A BUSCA AO SANTO GRAAL                                   

                                                                       

                                       Capítulo 01




                            O dia amanheceu claro, porém, um pouco nublado. Não havia no ar nenhum prenúncio de chuva, apenas o sol estava ainda parcialmente encoberto por algumas nuvens. E Ronaldo, vestido com aquele uniforme na cor amarelo cáqui, composto de calça e camisa de mangas compridas, ostentando no bolso de cima o orgulhoso emblema da Escola, representado por uma engrenagem bordada na cor vermelha e nos intervalos dos dentes desta dita peça, as letras E.F.C.B. e o nome “Escola Profissional Eugênio Fêio”, saía de sua casa para mais um dia na sua rotina de estudante.
Ele era o oitavo filho de uma família de doze pessoas, incluindo seus pais. Tinha a tez clara, olhos castanhos e cabelos da mesma cor, penteados para o lado, contrariando a regra geral, que era o topete jogado trás, à James Deam. Sua altura não passava de um metro e sessenta, magro de natureza, pesando entre 48 a 50 quilos, no máximo, e adepto dos que gostavam de jogar futebol. Por estas características, já deu para perceber que ele não era nenhum “pedaço de mau caminho”, como diziam as garotas, quando queriam se referir a um rapaz bonito. Mas era inteligente e muito aplicado nos estudos, tanto que estudava na Escola Profissional, das sete da manhã até as quatro da tarde, e à noite, ainda fazia o ginasial no colégio Napoleão Reis. 

Era o dia Primeiro de abril de 1964 e o Brasil acordava com sua política nacional e internacional, completamente de cabeça para baixo. O discurso eloquente do Presidente João Goulart, feito no Automóvel Club no dia anterior para mais de mil sargentos e auxiliares, foi a gota d’água que estava faltando, para o copo derramar. Pois, com esta fala, ficou bem claro a posição do estadista, de apoiar a esquerda exaltada. Tanto que por este motivo, o alto escalão da revolução, chegou à triste conclusão de que continuar transigindo com o governo, nestas alturas, era realmente começar o processo para sepultar de vez a democracia.
 Ronaldo ainda não havia completado seus 18 anos, e portanto estava ainda mais preocupado com os sucessos de Elvis Presley , Neil Sedaka ou Carlos Gonzaga, do que mesmo com a nossa fragilíssima e utópica, Segurança Nacional. E assobiando alegremente, desceu a rua Barão de Pouso Alegre, que passa ao lado da Matriz de São Sebastião, e para cortar caminho, entrou por dentro da praça Quitandinha, deixando as marcas do solado de seu Vulcabrás, nas areias brancas de suas ruelas bem traçadas e cuidadas.
Já na  saída desta praça, pela rua Wenceslau Brás, encontrou coincidentemente com seu professor de História Geral do colégio noturno, Afrânio Cardoso.
--- Bom dia, professor... o quê houve com o senhor? ... xixi na cama ou correção de  formigas?... E sorriu.
--- Olá Ronaldo... Muito bom dia pra você também. Disse o professor e continuou. É a situação que me pôs pra fora da cama mais cedo... Você não está sabendo das últimas?
--- Não!?... Sobre o quê, o senhor está falando? Perguntou.
--- Estamos á beira de uma guerra civil... uma revolução para ser mais claro.... graças à Deus, até agora não foi disparado nenhum tiro, mas a previsão geral é de que poderá ainda correr muito sangue. Respondeu ele.
--- Mas como?... se até ontem estava tudo tão calmo?
--- Calmo pra vocês, jovens... mas para nós os mais velhos, não... e eu particularmente, já estava esperando por isso há muito tempo.
A esta altura, os dois já haviam passado pela calçada do Colégio Napoleão Reis, que funcionava no prédio do Grupo Escolar Pacífico Vieira e já estavam quase na esquina da rua Dr. Campolina, próximo à padaria São Sebastião que era também conhecida como a “padaria da esquina”, de propriedade do Sr. Máx Kalic. E Ronaldo continuou indagando.
--- Mas professor...  E o quê o senhor espera que vá acontecer agora?
--- Muitas coisas... Por exemplo, até ontem à meia noite o nosso estado de Minas Gerais tinha se levantado sozinho. Nosso governador o Magalhães Pinto, já tinha requisitado toda a gasolina disponível nos postos da cidade de Belo Horizonte. E mandou fazer também um levantamento dos estoques de carnes e gêneros alimentícios, em todo o estado. Deslocou as tropas mineiras, para as divisas do Rio e de São Paulo, para o que der e vier.  Graças à Deus, ainda ontem, quando deu meia noite, São Paulo mandou dizer aos mineiros que estava indo com o General Amaury Kruel à frente do Segundo Exército, para enfrentar também o Primeiro Exército na divisa do Rio de janeiro.
--- Espera aí, então quer dizer que a coisa está só começando? Inquiriu Ronaldo.
--- Sim... Mas se espera muito de hoje... Porque se não houver mais adesões, Minas Gerais e São Paulo vão se declarar independentes do resto da União.
--- Puxa!?... Então a coisa está séria mesmo?
--- Se está?... Sério é apelido? A coisa está é preta mesmo.
--- E tudo isso por causa de quê, professor?
--- Porque na realidade, este atual governo deu muito espaço aos comunistas, e em conseqüência deste espaço concedido, o que não falta hoje é comunistas infiltrados em todas as instituições governamentais. Respondeu o mestre.
--- Mas... Isso que o senhor está se referindo, acontece somente nos grandes centros, não é?...
--- Aí que você se engana Ronaldo... Tem muitas “camisas vermelhas” por aqui também. Respondeu ele.
Era visível a preocupação do mestre sobre a situação, mas para Ronaldo como já disse, não. Ele era ainda muito novo para se preocupar ou mesmo entender o que estava realmente acontecendo, e como a caminhada já estava por terminar, pois os dois já estavam subindo a rampa da “travessia da Central” e logo depois chegariam a Estação Rodoviária, onde deveriam se separar, Ronaldo então mudou o assunto com uma outra pergunta.
--- Ah! Professor... Quando é que vamos ter outra aula tão gostosa quanto foi a de ontem?
--- Hã!?... Porquê esta pergunta?
--- Ora, porque eu sou fascinado por histórias que versam sobre o Rei Artur e sua corte. E na aula de ontem, eu nem vi a hora passar...
--- Ah!...  Infelizmente nunca mais!... Acontece, que eu sou igualmente atraído por este assunto... Aliás, atraído só é pouco, eu sou é um fanático mesmo. Mas ele não faz parte do currículo escolar de vocês, e eu só toquei nele, por que no domingo passado o Cine Regina exibiu a fita “A Távula Redonda...” e como sou um estudioso do assunto, deixei me empolgar... Mas isso não pode se repetir não.
--- Puxa!... Acho que um dia professor, ainda vou comprar todos os livros que encontrar sobre este assunto. Respondeu.
--- Por isso não... Se você gosta tanto assim, a hora que você quiser pode aparecer lá em casa que terei o maior prazer em conversar sobre isso... E depois, eu tenho também alguns livros que tratam deste assunto, logo poderei também lhe emprestar alguns. E dizendo isso, foi descendo a calçada para atravessar a rua e entrar na Rodoviária, enquanto Ronaldo continuava seguindo reto, passando em frente à Selaria Chaves, para poder virar à esquerda. E enquanto o professor entrava entre os dois ônibus ali estacionados, um da Viação Santa Elisa e o outro da Viação Boa Vista, Ronaldo então falou, à guisa de despedida.
--- Na primeira folga que eu tiver, vou visitá-lo então... ok?
--- Já disse... Quando quiser. Respondeu o professor ainda antes de ganhar a plataforma da Estação. E depois, passando por detrás dos guichês, novamente atravessou a rua para ganhar a calçada do Armazém Nassif, e subir então a rua Melo Viana.
Ronaldo por sua vez, virando à esquerda e entrando na Rua do Boqueirão, seguia pensando no convite que o professor lhe havia feito. E empolgado com a idéia de ter esta conversa sobre a Era Arturiana, foi falando consigo mesmo, que esta visita não ia demorar muito para acontecer, não.
Ao chegar próximo à Escola, ouviu o som da campainha estridente que anunciava o fechamento do portão, isso então fez com que se apressasse dando uma corridinha para não encontra-lo fechado. Uma vez dentro da escola, logo lhe foi comunicado que todos os alunos deveriam estar com urgência dentro da sala de aula do segundo ano, para uma reunião urgente com o Diretor.
 Não levou muito tempo e o Sr. Erothes, muito sério como era o seu natural, entrou calmamente na sala e todos os alunos ficaram de pé em sinal de respeito, ou melhor, todos não, só quem estava sentado se levantou, pois como não havia lugar para todos, a maioria já estava mesmo de pé.  E ele então disse.
--- Bem... Devo avisar a todos que a situação política do país, não está nada boa. E que é bem provável que ainda terminemos o dia de hoje em meio a uma guerra civil.  Em conseqüência aos acontecimentos de ontem, a nação hoje se encontra em Estado de Sítio. Isto quer dizer que hoje não haverá aula... E que todos vocês, sem exceção nenhuma, devem voltar para casa imediatamente, indo no máximo de dois em dois e em hipótese alguma, deverão parar com ninguém nas ruas.  Uma vez em casa, evitem o máximo saírem à rua, enquanto durar este “estado de emergência”. Fiquem sabendo que numa situação dessa, a polícia pode muito bem prender qualquer um que desrespeitar a ordem, ou mesmo, ficar simplesmente perambulando pela rua.
E para perfeita conscientização da atual situação por parte dos alunos, o Diretor do educandário foi soltando-os em duplas, espaçadas por um tempo de trinta segundos.
Ronaldo então saiu junto com seu amigo o Antônio Carneiro, que por sinal, era o aluno que de toda a Escola, tinha verdadeira paixão por política, de forma então que este amigo foi colocando Ronaldo a par dos fatos que estavam acontecendo. E já na rua, ele dizia.
--- A situação é seríssima... O Presidente João Goulart, ontem tentou insistentemente dialogar com o Magalhães Pinto, mas nosso governador se recusou terminantemente a conversar com ele. E está mandando os Generais Carlos Luís Guedes e Olímpio Mourão, para a divisa e prontos para enfrentar o  Exército da Guanabara, se for preciso.
--- Então isso quer dizer... ei...olha lá!?...  exclamou Ronaldo interrompendo sua pergunta, quando notou que  um trem composto de vagões plataformas, estava passando na travessia, e em cima de cada vagão viajava uma arma pesada do Exército, escoltadas  por muitos soldados usando fardas de combate. ... Nossa mãe!... olha só!... Tanques de guerra, cara!... Canhões também!...  Ronaldo estava estupefato com o que via.
--- Eu não te falei que a situação era grave?... Estão indo em direção ao Rio de Janeiro, e isso é só o começo.... até  à noite de hoje muita coisa ainda vai acontecer. Disse Antônio.
E antes de se despedirem, porque uma vez passando por aquela passagem de nível, os dois então separariam, com o Antônio Carneiro seguindo pela rua Marechal Floriano e o Ronaldo continuando pela rua Dr. Campolina até sua casa, Ronaldo então completou a pergunta que fora interrompida pela passagem do trem militar.
--- E então Carneiro?... Como ficará esta situação?
--- Por enquanto não se pode dizer nada...  O certo mesmo, é que ainda é muito cedo para se falar alguma coisa. Mas, todavia, já é certo uma coisa. A de que de hoje em diante, nossa realidade foi alterada, e será bem diferente daqui pra frente.
Dizendo isso acabaram de descer a rampa calçada, da travessia, e se separando  foram diretos para suas  casas.
O restante do dia transcorreu completamente fora do normal.  Poucas casas comerciais se arriscaram em abrir suas portas. Em todos os colégios da cidade não houve aulas, aliás, esta medida foi na verdade uma tentativa de evitar aglomerações de pessoas, e neste caso, era de muito bom alvitre resguardar a integridade dos nossos jovens. Naquela tarde, os repórteres das Rádios mais importantes do país, davam noticias incertas e muitas vezes especulativas, sobre o paradeiro do ex-presidente João Goulart. Boatos, era o que não faltava na cidade.
            
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Afrânio era bancário, e estava em Lafaiete na condição de funcionário transferido, pelo Banco Comércio e Industria. Natural da Zona da Mata, mais precisamente de Juiz de Fora, residia atualmente no final da rua Wenceslau Brás, onde morava sozinho. Uma senhora, de mais ou menos 45 anos de idade, cuidava da limpeza de sua casa, além de cozinhar, lavar e passar suas roupas. Era alto, mas não muito forte, cabelos pretos e penteados para trás, possuía uma larga sobrancelha inteiriça, que o fazia bastante diferente. Pele morena, e com seus quarenta e oito anos, era simpático e extremamente educado. Mantinha ele a cadeira de História Geral no Colégio Napoleão Reis, mais como forma de preenchimento do seu tempo ocioso, pois não dependia dela para sua sobrevivência.
E hoje, logo após ter se despedido de Ronaldo perto da Estação Rodoviária, subiu a rua Melo Viana chegando até ao prédio do banco onde trabalha, que ficava situado em frente ao I.A.P.E.T.E.C, pouco acima da Joalheria Irmãos Bellavinha. Ali, na porta, dois outros colegas já o aguardava com ansiedade. Afrânio ao chegar, cumprimentou-os enquanto separava a chave certa, em um chaveiro que continha  várias outras, e quando então se preparava para abrir a porta, um, dos dois colegas, perguntou como ficaria a posição do Banco, em relação ao Estado de Prontidão, colocado pelo governo mineiro
--- Ainda não estou em condição de responder-lhe, mas, contudo acho que não iremos abrir hoje. De qualquer forma, só vamos ficar sabendo mesmo depois que eu ou o nosso gerente, ligarmos para a matriz e pedirmos orientação. Até lá, vamos agir normalmente e creio que até a hora de abrirmos ás portas para o publico, isto é ao meio dia, já deveremos ter uma posição definitiva.
Mas nada diferente do esperado aconteceu. A ordem da matriz do Banco foi para que os funcionários ficassem por conta de tarefas internas, e suspendessem por hoje o atendimento externo à clientes. E este foi também o procedimento adotado pelos outros similares do ramo. E com os Bancos fechados, o comércio da cidade que é centralizado na artéria Melo Viana, não teve outra alternativa se não a de fechar suas portas também.




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No dia seguinte, quarta feira 02/04, a situação continuava muito tensa ainda. O governo de Minas conseguiu controlar os focos que ainda davam apoio ao ex-presidente da República, digo “ex”, porque desde a madrugada de hoje, já estava empossado no cargo de Presidente do Brasil, o Deputado Ranieri Mazzilli.
 No estado da Guanabara, a situação estava começando a deteriorar de vez, pois além do incêndio no prédio da UNE, houve também muitas colisões de veículos durante a madrugada e até atropelamentos de civis com mortes.
Mas finalmente às quinze horas e quinze minutos, as Rádios comunicavam oficialmente à população, que o Primeiro Exército, o do estado do Rio de Janeiro, se juntara definitivamente ao Segundo Exército de São Paulo e ao Terceiro, de Minas. Era então o fim das expectativas. Estava assegurada mais uma vez a Democracia no Brasil. Em todos os estados da União houve alguma forma de comemoração. Nas capitais, chuvas de papel picado e carreatas.  No Rio de Janeiro, além destes tipos de manifestações, também houve “A Marcha Com Deus Pela Liberdade”, e nunca se viu tanta gente reunida para fazer uma passeata.
 O resto da tarde e à noite já foram mais tranquilas, principalmente depois que começou a ser veiculada a notícia do paradeiro do ex-presidente João Goulart. Este,  já estava de posse de um asilo político, concedido pelo governo do  Uruguai, e para lá, tinha se dirigido. Com isso a cúpula da revolução, agora passando a se sentir mais segura, relaxou o Estado de Sítio que até aqui havia imperado. 
A vida então, principalmente em cidades pequenas como Lafaiete, começava então a partir da tarde de hoje, voltar à sua rotina de sempre.
Os cinemas: Regina e Glória, com suas sessões simultâneas às dezenove horas e quarenta e cinco minutos e vinte horas e quinze minutos, respectivamente, apresentavam o mesmo filme “Antro de Desalmados”, um “Western” com Audie Murph, e nos Cines Avenida e Central, a comédia brasileira “Pé na Tábua” com Ankito e Grande Otelo, funcionavam normalmente. Entretanto, foram expressamente proibidos de exibir os documentários que falassem de política, como era comum apresentá-los antes da exibição de qualquer seção cinematográfica.
Com o restabelecimento da vida da cidade, o movimento maior ficou mesmo por conta dos cinemas, isto porque os colégios não funcionaram também naquela noite. Portanto, podiam se ver alguns grupinhos de rapazes na porta do Bar Samôr, que ficava colado ao cine Regina, e nas imediações do Bar Wanda e também, perto da Agência de Revistas do famoso “Zé Lírio”. Tudo correndo como já era previsto, mesmo porque indiferente à revolução, todas às noites, o famoso Capitão Lucas, delegado da cidade, fazia seu ostensivo e  insistente patrulhamento noturno das principais ruas do centro e dos bairros, em seu  famoso “Jipão” cinza, e ele não gostava de ver jovens perambulando pelas ruas.
Ronaldo havia assistido o filme do Audie Murph. Na saída do cinema, optando por sair pela porta que também dava acesso à loja Santa Branca, que funcionava  contiguamente ao cinema, e antes de descer da calçada para a rua, teve que esperar passar  o lotação da Viação Lafaiete que subia lotado, em seu último horário. Quando conseguiu descer, encontrou novamente seu  professor do Colégio, e ambos  foram conversando rumo a praça Quitandinha.
--- E aí professor?... Gostou do filme? Perguntou o garoto.
--- Sim...  Particularmente gosto muito de faroeste. Respondeu ele.
--- Eu também... E ainda mais com este ator... mas... mas e a política?... a situação se acalmou? Indagou Ronaldo, mudando de assunto.
--- É... É o que parece... E graças a Deus, não houve maiores complicações. Mas se você quer saber, esta era a única maneira que os direitistas tinham para retomar o poder novamente, só usando a força. Lógico, que ainda falta resolver o problema de divisão da Marinha, porque uma parte dela ainda continua em “cima do muro...” mas agora sem o apoio anterior que eles tinham, ficou mais fácil. E contornando este problema, finalmente poderão colocar “ordem na casa”.
E descendo a rampa da  travessia da Central, pegando a calçada da “sapataria do Horacinho”, como éra conhecida pela população, seguiram pela rua Dr. Campolina.
--- E qual é a opinião do senhor, sobre o que vai ser daqui pra frente? Perguntou novamente Ronaldo.
--- Olha... Na atual situação, qualquer um de sã consciência se puder, deve ficar de boca fechada. Respondeu ele.
--- Tudo bem... Eu compreendo a colocação do senhor, mas o meu questionamento é: será que tudo vai ficar bem? Insistiu o rapaz.
--- Olha Ronaldo... o que vou dizer fica só pra você, ouviu?... Mas na minha opinião, militar só sabe fazer guerra... governar mesmo, nunca foi o estilo deles. Se no “frigir dos ovos”, eles voltarem para o quartel e deixarem o poder para os civis, a coisa poderá caminhar bem. Mas se resolverem conduzir os destinos da nação, minha previsão é bem catastrófica.
--- Mas, e o Raniere Mazzilli?... Ele não é civil, professor? Insistiu  Ronaldo.
--- Sim... mas só que ele é apenas um Presidente “tampão”... talvez ainda esta semana seja eleito outro... e Deus queira que seja um civil.
Antes de se separarem na praça Quitandinha, Ronaldo fez sua última pergunta.
--- Bem professor... aqui nos separamos, mas a propósito da nossa conversa de ontem, o senhor tem algum compromisso para sábado?
--- Não... você pergunta porque pretende ir lá em casa? Respondeu Afrânio.
--- Sim... para que possamos falar sobre o Rei Artur.
--- Pois não... a que horas pretende? Perguntou o mestre.
--- Sei lá.... o que eu não quero é incomodar o senhor.
--- Já lhe disse ... terei o maior prazer em conversar sobre o assunto.
--- Que tal à tarde então?... porque à noite devo ir ao cinema. disse Ronaldo.
--- Tudo bem, então... E se separando, completou.  ... estarei à sua espera, boa noite.



                               Capítulo 02





Ronaldo levantou cedo como sempre o fazia, para ir para Escola Profissional. E como aos sábados, o expediente era só na parte da manhã, e voltado exclusivamente para a Educação Física, estivera ele toda a manhã juntamente com o restante dos alunos, no Campo do Olímpico, que ficava situado na rua Dr. Moreira, às margens do Rio Bananeiras, e sob a orientação do professor Ari Rocha.
À tarde depois do almoço, saiu de casa para cumprir o que havia tratado com seu professor. Ao passar por dentro da praça, contornando o lago seco central, que em passado distante havia sido uma belíssima fonte luminosa, chegou ao lado do bar, que funcionava dentro da praça.
No gramado ao lado deste, tinha uma turma de rapazes que com uma vitrola à pilha ouviam e cantavam juntos os Rock’s de Carlos Gonzaga e Cely Campelo. E com a ajuda do violão do “tião da Landica”, executavam os sucessos de Carlos Alberto e Altemar Dutra. Se não fosse maior a paixão pelo assunto que ia ver com o professor, Ronaldo também tinha se juntado àquele grupo, pois cantar naquela “rodinha” era uma coisa que ele também gostava muito de fazer.
Desvencilhando dali, chegou na casa do Afrânio e foi recebido por Da. Jandira, sua governanta.
--- Boa tarde... Cumprimentou ele à compassiva senhora.  ... o professor está? Perguntou.
--- Sim... Respondeu ela.
--- É que eu combinei com ele de vir aqui hoje para estudar...
--- Pois não pode entrar...
E levando Ronaldo para uma sala com piso de tábua corrida muito bem encerada, caminhando por sobre uma passarela de plástico com aparência de tapete, fê-lo sentar-se em uma poltrona bastante macia e confortável.
--- Fique à vontade que vou já chamá-lo. Disse a senhora.
Enquanto ela se dirigia ao quintal da casa, para chamar o professor, Ronaldo ficou ali observando a sala e seu conteúdo. Havia uma mesinha de centro, em madeira. e em cima dela um vaso de planta. Do outro lado desta, um sofá para três lugares em cor vinho e ao lado deste, fazendo 90 graus com ele, um outro com dois assentos. Ao fundo, na parede que dá para a frente da casa, dava para se ver apenas a silhueta de uma janela, pois ofuscando-a, havia uma cortina de rendas brancas que tomava conta da parede toda. Na parede ao lado da poltrona em que se sentara, alguns retratos antigos em molduras modernas e vistosas. E à sua frente, uma estante alta que ia até o teto, tomando conta da extensão da sala, fabricada em mogno com  seis portas relativamente grandes. E através de seus vidros, dava para se ver uma quantidade enorme de livros, uns finos outros grossos, uns pequenos outros grandes, mas que por sua quantidade, mostrava bem o grau de cultura que o professor devia ter. Curioso como era, Ronaldo se levantou e ficou lendo os nomes dos livros contidos naquela estante.
--- Boa tarde Ronaldo. Cumprimentou Afrânio ao entrar na sala.
--- Boa tarde professor... eu estava aqui admirando sua biblioteca... é simplesmente fantástica.
--- É... sempre que posso eu compro algum... Isso não quer dizer necessariamente que eu os leio. Mas livros é sempre bom a gente ter. Principalmente para mim, professor de História, sempre tenho que pesquisar alguma coisa. Disse Afrânio, se assentando na poltrona em que tinha se assentado Ronaldo, quando este entrou com a governanta. E aí ... como vãos as coisas? Perguntou ele enquanto se assentava.
--- Tudo bem. Disse o rapaz, se acomodando na poltrona de dois lugares.
--- Bem... vamos começar então?...convidou o mestre.
--- Vamos... só não sei por onde, mas temos que começar por algum lugar. Disse Ronaldo.
--- Vejamos então... vamos começar pelo inicio mesmo. Por onde tudo começou... lá atrás, com a invasão romana.
--- O quê?... invasão romana? Ficou confuso Ronaldo.
--- Sim... tudo começou com ela. Agora antes de mais nada, eu tenho que te dizer uma coisa muito importante. Como já te disse outro dia, eu sou um apaixonado do assunto, e como tal tenho uma opinião própria sobre Artur. Contudo, eu devo falar deste assunto da mesma forma que qualquer estudioso da matéria falaria para você. Ou seja: “Artur e sua corte, nada mais é que uma linda e doce lenda”. E portanto, mesmo que venha a me empolgar durante a nossa conversa, você deve sempre ter isso em mente:  “Artur é uma lenda”.
--- Como assim professor... quer dizer que tudo isso que temos sobre ele é mentira?
--- É... e não é...  mais para o final, você tirará suas próprias conclusões.
--- Veja bem professor... o senhor acabou de dizer que tem uma conclusão própria a respeito. Então eu vou pedir para que o senhor me diga com sinceridade, o que senhor pensa disso tudo. Porque se for simplesmente lenda, eu não vou ficar perdendo o meu tempo e nem tampouco fazê-lo perder o seu.
--- Olha Ronaldo, particularmente eu acho que não. Pois existem muitas provas circunstanciais de que não só ele, mas também toda sua corte existiram. Tanto que se eu pudesse, iria para a Inglaterra hoje mesmo e começaria minhas pesquisas sobre o Santo Graal.
--- Bom pelo menos, agora já dá para se falar no assunto, mas... Santo o quê? Perguntou Ronaldo.
--- Santo Graal... respondeu o professor, e continuou. ...  por enquanto deixe como está, na hora certa você compreenderá o que vem a ser isto.
E se levantando da poltrona, foi até a estante. Depois de uma pequena procura, pegou um livro vermelho de capa dura e abrindo-o, mostrou a Ronaldo o capítulo sobre o qual ia começar a falar.
--- Aqui está... Invasão da Britânia.... No ano 54 antes de Cristo, o Imperador Romano Júlio César, conquistou esta terra, após ter enviado uma expedição exploratória no ano anterior ao da conquista. Contudo não deu muita atenção a esta nova possessão romana, conforme deveria ter dado. Compreende-se este pouco caso que teve com a terra conquistada, por causa da preocupação dominante de expansão territorial dos domínios de Roma, isto é, imperava neles o sonho de conquistas. Somente mais tarde no ano 43, também antes de Cristo, que com a morte deste Imperador, o novo mandatário romano de nome Cláudio, veio finalmente impor ordem à colônia britânica.
Ronaldo então mostrando-se muito interessado em ver a ilustração do livro que simbolizava a invasão romana, fato que ele desconhecia completamente, pegou o livro das mãos do professor e ao assentá-lo em seus joelhos, caiu de dentro deste, um bilhete de loteria  inteiro.
--- Nossa!... que desastrado que eu sou... e apanhando-o do chão, notou do que se tratava e guardando-o novamente entre as páginas do livro, brincou com Afrânio. ... o senhor joga na loteria pra valer, hein!?.
Meio desconcertado, o professor disse.
--- Sabe o que é? Eu sonho com uma viajem à Inglaterra... E quando me aposentar, pretendo realizá-la... mas... também arrisco na loteria de vez em quando, porque se um dia eu ganhar, faço a viajem mesmo antes da aposentadoria.
--- Puxa!... Sinceramente eu achava que o senhor fosse fascinado com esta história, mas agora tenho certeza de que o senhor é “vidrado” nela.
--- Mas à medida que você for conhecendo-a, tenho certeza que ficará igualzinho a mim. Disse sorrindo.
--- Não professor... Nem tanto à terra, nem tanto ao mar...
Depois disso então o professor voltou a falar.
--- A história neste ponto dá um pulo muito grande...  vamos então para o ano 410  Neste ano, um líder do povo visigodo, chamado Alarico, mais propriamente empurrado pela fome que assolava as terras alemãs e as ameaças constantes de tribos asiáticas, irrompe contra Roma, que nestas alturas está com o seu império já bastante enfraquecido. E, para fugir dos visigodos, os romanos são obrigados a deixar a capital do império nas mãos do invasor, enquanto transferia seu Imperador Honório, juntamente com  sua corte para a cidade de Ravena, ainda em solo italiano.
--- Mas professor, se o império romano se enfraqueceu a ponto de deixar Roma para o invasor, logicamente todas as conquistas que fizeram ao longo de vários séculos de domínio, ficaram nestas alturas, entregues a quem quisesse ocupá-las.
--- Bem... era mais ou menos isso que estava acontecendo, tanto que quando a colônia britânica pediu ajuda ao Imperador,  este apenas se limitou em responder que: “cada colônia que se arranjasse sozinha”. E este povo que foi deixado à mercê de sua sorte, e que era chamado de Bretão, nada mais era do que a miscigenação dos celtas, antigos donos da terra, com os romanos colonizadores. Com a derrocada do Império Romano, os bretões fizeram um pacto com os lideres jutos, que na verdade eram lideres dos povos saxões e anglos, dando-lhes um território à sudeste da Britânia, em troca de proteção contra os ataques das tribos bárbaras dos pictos e escotos. Contudo, esse pacto teve uma vida muito curta.
--- Interessante... se não me engano, não é este povo anglo-saxão, que ficou com a ilha?
--- É... isto porque logo, logo, os líderes jutos, passaram a cobrar mais pela sua proteção, isto é querendo mais terras. Vortigern, o líder bretão, até que estava propenso a dar-lhes o que queriam, só que tentava negociar um valor mais baixo para o tributo a ser pago. Como este acordo demorou muito para acontecer, os povos “protetores” começaram então a pretender o controle total da ilha. Foi aí que aparece Ambrosius, que organizando o exército bretão combate os saxões, os anglos e os jutos. Feito isso, os bretões passaram a conviver com as freqüentes tentativas de invasão destes povos. E uma das mais célebres batalhas desta época, foi a batalha de Badom.  Como o perigo de invasão por parte destes povos nunca foi eliminado totalmente, num período de quarenta anos mais ou menos, conseguiram conviver em paz. Mas no final do século VI, os Bretões foram finalmente conquistados pelos anglo-saxões. Como você pode ver o próprio nome “Inglaterra”, se deriva do povo anglo. E é exatamente nesta época, antes da conquista dos anglo-saxões, que segundo os grandes historiadores, existiu o nosso herói Artur.
--- Isso quer dizer que Artur era bretão e não anglo-saxão conforme muita gente acredita? Disse Ronaldo.
--- Exatamente... como você pode ver que este povo só conquistou a Britânia, quarenta anos depois da batalha de Badom, de onde se tem o primeiro  indicio da lenda de Artur. Agora a minha paixão maior, é localizar o Santo Graal, que segundo pude apurar, foi trazido para a Britânia por um soldado romano que trabalhou na construção da muralha de Adriano.
--- Bem professor... vamos por partes. Quem foi Adriano? E depois o que é este Santo graal? Indagou Ronaldo que ouvia tudo sem mesmo piscar os olhos.
Nesta hora Da. Jandira entrou na sala e convidou os dois para tomarem um café.
--- Com licença “seu” Afrânio... mas acabei de coar um café e busquei um pão doce de coco, fresquinho, na padaria do “Zé Martins”....
--- Pois não Da. Jandira, disse o dono da casa. E se dirigindo ao rapaz disse. ...Vamos então Ronaldo porque estou doido por um cafezinho. Depois então voltaremos a falar mais sobre isso.
Depois do café, voltaram para a sala e continuaram a conversa.  O professor então a iniciou.
--- Bem... Então como você tinha perguntado, Adriano foi um Imperador romano do século II, e foi um dos mais preocupados com a defesa da colônia britânica. Foi ele quem mandou construir uma muralha de quase 120 quilômetros de extensão em solo britânico, no ano 122, para se proteger dos pictos do norte, famosos por suas crueldades.
--- E Santo Graal, o que quer dizer isso?.
--- Santo Graal, é na verdade o cálice que Jesus Cristo usou na Santa Ceia, que fez junto  aos apóstolos.
--- E o quê isto tem a haver com a Era Arturiana?
--- Bem... alguns anos depois da Santa Ceia, este cálice foi parar nas mãos de José de Arimatéia, que era um homem extremamente rico e que dava muito valor às coisas que por ventura, houvessem passado nas mãos de Jesus. Mas ele era judeu, e não sei por qual motivo, mais tarde sua fortuna foi parar nas mãos do Imperador. E entre estas coisas, estava o Santo Graal. Acontece que por volta do ano 120, para atender a construção desta grande muralha, muitos romanos vieram para ajudar na tarefa de construí-la. E um pergaminho desta época, descoberto há pouco tempo, relata um processo contra a família de um soldado romano, que fora enviado para a Britânia, acerca de um suposto roubo do Santo Graal. O documento, termina dizendo que a família do guerreiro, morrera na prisão. E que o suposto soldado desonesto nunca fora encontrado em parte alguma da Britânia, e nem o Santo Cálice, sequer voltou para Roma. Isto que eu estou lhe dizendo, você não vai encontrar em livro algum, porque trata-se de uma descoberta recente e necessariamente este pergaminho ainda será examinado quanto a sua veracidade.
--- Então não temos prova de que isto é verdadeiro, certo?
--- Sim, porém em minha opinião o Santo Graal está escondido em algum lugar do solo inglês, pois senão ele não entraria na lenda do Rei Artur.
--- Mas onde é que ele entra na história? Perguntou Ronaldo
--- Se tem notícias dele, nos encontros secretos dos “Doze Cavaleiros da Távula Redonda”.
--- Mas mestre... enquanto o senhor estava falando aí, eu fiquei vendo aqui neste livro a ilustração do Santo Graal, agora em abaixo dela, diz a legenda  se tratar  apenas de uma “visão do Santo Graal”,  e não propriamente de uma peça metálica materializada.
--- Aí está um ponto que eu discordo completamente. Disse o professor.
--- Pôxa professor... são os historiadores que estão falando... retrucou Ronaldo.
--- Pois então ouça meu raciocínio. Os Cavaleiros citados, não eram de forma alguma uns “santos”, muito até pelo contrário, eles eram na verdade, muitas vezes assassinos impiedosos e até injustos, quando chamados para arbitrar alguma causa. Duelavam e se matavam em torneios e lutas ferrenhas, por qualquer motivo. Portanto, não dá para acreditar em “visão”, pois como visão essa teria vindo da parte Deus, e como tal, seria uma coisa divina. E no meu entender, Deus não compactuava com àquelas propostas de vida dos Cavaleiros, daí então, só posso conceber a idéia de que o cálice era na verdade metálico e perfeitamente materializado, porque só desta forma se justificaria sua presença no meio deles, e jamais como visão. Compreendeu?
--- É... Levando por este lado... o senhor bem que tem razão. ... Mas Ronaldo se levantando, disse.
--- Bem professor... a conversa está muito boa, mas também está ficando tarde e eu pretendo ir ao cinema.
--- Mas ainda é cedo? Disse ele.
--- Não, já são cinco e meia e a sessão que eu vou é a das seis e trinta, no Cine Avenida. Ronaldo dizendo isso, se dirigiu para a porta de saída.
--- E que filme vai passar hoje? Perguntou Afrânio, também se levantando.
--- “Por Quem os Sinos Dobram?”, com Gary Cooper e Ingrid Bergman. Parece que vai ser um filmão... porque não vai também.
--- Eu vou ver... disse o professor. ... mas se eu for, devo ir na sessão de oito e trinta. E abrindo a porta para Ronaldo, completou. ... Se quiser ouvir mais “lorota”, volte outro dia.
--- Voltarei sim... Que tal sábado que vem, no mesmo horário?
--- Por mim tudo bem... Concordou o mestre.
--- Então até lá, professor.
Ronaldo saiu da casa de Afrânio, e quando chegou na esquina da praça, viu uma viatura de cor preta, com a sigla DOPS pintada em sua porta, passar por ele em disparada. Nesta hora lembrou do que o professor lhe havia dito sobre “a caça às bruxas”.
E era justamente isso que estava acontecendo. Uma meia dúzia de pessoas já tinham sido presas na cidade, para interrogatório e averiguações. Enquanto que no país, esse número já era incalculável.



                                  Capítulo 03



A semana passou, e alguns acontecimentos políticos tiraram a calma da nação brasileira. Na quarta feira, 09/04, justamente uma semana depois da revolução, os militares começaram a mexer com as pedras do tabuleiro, sem dar sequer satisfação ao Presidente Interino Raniere Mazzilli. Alem de mandar invadir o prédio da UnB ( Universidade de Brasília) pela Polícia militar, suspendeu também por um período de dez anos, os direitos políticos de trezentos e trinta e sete pessoas, incluindo nelas figuras como João Goulart, Jânio Quadros e Juscelino Kubtschek. E ontem, sexta feira 11/04, o Congresso Nacional aprovou, com trezentos e sessenta e um votos a favor, os nomes do marechal Castelo Branco e de  José Maria Alkmim, para a  presidência e vice-presidência do Brasil, respectivamente. Houve ausência de trinta e sete parlamentares à esta sessão e setenta e dois presentes se absteram de votar.
E hoje depois do almoço, conforme combinado, Ronaldo compareceu na casa de seu professor Afrânio Cardoso, para continuar sua conversa sobre a era arturiana.
--- Boa tarde professor... Dando uma de jardineiro hoje? Disse o garoto ao chegar no portão da casa, e perceber Afrânio agachado no meio das folhagens, arrancando matinhos nos canteiros do jardim.
--- Oi Ronaldo... boa tarde... entra aí?... eu quando tenho tempo, gosto de mexer com terra... Pra gente que trabalha com números...  é uma boa terapia. Respondeu ele se levantando e caminhando para a porta da casa.
--- A propósito professor... está acontecendo aquilo que o senhor falou. Disse o rapaz enquanto caminhava atrás dele. E completou a seguir. ... os militares parecem que vão comandar daqui pra frente.
--- É... depois de ontem, eu perdi as esperanças... embora eu esperasse propriamente o que está acontecendo, mas no fundo, ainda tinha uma certa esperança... pequena, mas ainda assim tinha... no entanto agora, acabou de vez.
--- Bem... mas o tempo passa depressa.... três ou quatro anos na verdade é um pulo... e aí então teremos a democracia outra vez. Ronaldo disse isso, já dentro da sala da residência.
O professor, parando na porta e mandando Ronaldo sentar-se e ficar à vontade, pediu licença para ir ao banheiro lavar as mãos, que se encontravam bastante sujas de barro. Na sua volta, foi entrando e falando.
--- Só você que acha que vai ser por três ou quatro anos, mas engana-se redondamente.... militar quando pega o poder, dificilmente o larga... na minha opinião, acho que a democracia agora vai demorar muito para voltar outra vez, isso, se voltar. Respondeu o professor, enquanto se dirigia para a estante a fim de pegar um livro. E pegando-o, foi sentar-se na sua poltrona individual, enquanto Ronaldo continuava sentado no sofá. Logo que se sentou o professor falou.
--- Hoje Ronaldo, nós vamos falar sobre os indícios que temos sobre a existência da famosa “Corte do Rei Artur”.
--- Ótimo... se já estava gostando das invasões romanas, agora vou gostar muito mais.
--- Então vamos lá... o documento mais importante que temos em mãos trata-se de um poema épico. Devo explicar que, segundo os historiadores, e isso é perfeitamente comprovado, os poetas épicos da era medieval, só compunham poemas para fatos ou personagens verídicos. E existe um poema chamado “Gododdin”, que em seus versos, canta e decanta os feitos e as lutas de um guerreiro valente que foi morto naquela época, isto é nos anos seiscentos de nossa era. Contudo, ao final do poema, o poeta diz “Mas ele não foi Artur”.
--- O poema termina com esta frase? Perguntou Ronaldo.
--- Sim. E aí é que se dividem os historiadores. Uns acham que o povo bretão, queria ter um ídolo e que por isso acreditam eles, que a frase foi acrescentada. Já uma outra ala, acha que esta afirmação não é verídica, por várias razões. E uma delas, é que sendo um povo valente, orgulhoso e ás vezes até meio bárbaro, uma mentira ou mesmo uma história de um ídolo falso, não sobreviveria entre eles.
--- Realmente... também acho que a primeira hipótese não condiz com a história destes povos. Completou o rapaz.
--- Então... Continuou Afrânio. ... Se Artur foi mencionado naquela época, é uma prova circunstancial, de que vivera antes do poema ser escrito, isto é mais ou menos no inicio do século sexto. Mas todavia, não poderia ter vivido muito antes dele, pois sua memória ainda estava bem viva.
Dizendo isso, o professor se levantou e foi novamente à estante e dele retirou outro livro, este de capa dura e escura, aparentando ser bem mais antigo. E sentando novamente ao lado de Ronaldo, falou.
--- Neste livro aqui, você vai encontrar alguns fragmentos, datados do ano 679, escritos por um monge e historiador galês, chamado Nênio, que ao escrever seu livro Historia Brittonum ou em português quer dizer “Historia dos Bretões”, conseguiu juntar provas da existência de Artur.
--- Puxa vida... agora compreendo porque o senhor diz que é apaixonado por estas histórias... Interferiu o garoto.
--- Pois então... Continuando. As fontes que Nênio usa, são textos de outros autores. Contudo parece que ele se manteve bastante fiel a esses escritos, não avaliando-os como faria um historiador moderno que os usariam de uma maneira ordenada. Nênio se satisfez com o simples relato de tudo que encontrou sobre a história do mundo, numa seqüência que ele acreditou ser cronológica. Tanto que ele mesmo diz em seu livro “Fiz um amontoado de tudo que encontrei”. E é nesse “amontoado” que encontramos a primeira referência a Artur. Segundo Nênio, o famoso rei guerreiro lutou contra os saxões “cum regibus Britonum, sed ipse dux erat bellorum”, isto é, lutou “junto com os reis bretões, mas foi ele o líder das batalhas”. E em seus escritos, o monge galês segue creditando a ele as vitórias de doze batalhas da seguinte forma: a primeira aconteceu na desembocadura do rio chanado Glein; as quatro seguintes nas margens do rio Dubglas, na região de Linnius; a sexta ás margens de outro rio, desta vez o rio Basses; a sétima no bosque de Celidon; a oitava, perto de Castle Guinnion, onde segundo o monge, Artur levou em seus ombros a Imagem de Santa Maria Sempre Virgem; a nona na cidade de Legion; a décima foi no rio Tribui; a décima primeira na colina Agned e a décima segunda foi no monte Badom, na qual caíram diante de Artur e seu furioso exército, novecentos e sessenta homens.
--- E isto é comprovado oficialmente, professor? Quis  saber Ronaldo.
--- È o que eu te falei... apenas os escritos, mas nenhum destes lugares foram localizados até agora... Um outro relato histórico, é os Anais de Gales datado do ano 950, e assim com o anterior, também foi escrito em latim, porque a língua galesa não tinha alfabeto, e por isso não podia ser escrita. Nele o rei guerreiro é citado duas vezes. Com relação aos acontecimentos do ano de 517, o autor informa que o escudo de Artur, portava a Cruz de Nosso senhor Jesus Cristo e que ele fora vitorioso na batalha de Badon, que teve a duração de três noites e três dias. A outra alusão ao rei, o autor a faz nos acontecimentos de 538, onde ocorreu a batalha de Camlann, e neste lugar Artur e Mordred caíram. Mesmo esta última citação: Camlann, é também tão desconhecida, quanto as doze localidades referenciadas por Nênio.
--- É professor... é uma história bem complicada, confesso que estou bastante confuso. Questionou o garoto.
--- È confuso mesmo, mas para mim que já estudo este tema há muitos anos, dá para se tirar duas conclusões: A primeira, é que Artur nasceu por volta do ano 475 em uma família galesa e cresceu educado conforme as instituições romanas. Ainda jovem aliou-se a Ambrosius, rei dos bretões, que estava precisando de um sucessor. Tornando-se chefe, participou de campanhas militares postas em defesa da cristandade. Sucedendo Ambrosius, dirigiu os combates no oeste e no norte da Britânia, contra aos invasores saxões. A batalha de Badom em 517,  foi sem dúvida  seu maior feito, e a seguir manteve a paz por  quarenta anos, até que em 538  morre na batalha de Camlann. A Segunda e menos provável, é que artur foi simplesmente um guerreiro britânico do século sexto, que se distinguiu na luta contra os saxões.
--- Professor... o senhor falou em vários lugares por onde passou o Rei Artur, mas até agora não o ouvi sequer tocar no nome  da cidade onde tudo se passou, ou seja em Camelot.?
--- Camelot... para os historiadores continua sendo uma incógnita. Mas recentemente, escavações feitas por Leslie Alcock, na colina de Cadbury, no sudoeste da Inglaterra, examinou fragmentos arqueológicos que datam da era romana. E acreditam ser ali o local onde no passado existiu Camelot. Mas isso você não encontrará  em nenhum livro, porque ainda está em fase de estudos. Mas eu tenho comigo que é justamente neste lugar, que algum dia, alguém encontrará o Santo Graal.
Neste momento, um garoto entrou correndo no portão da casa, gritando sem parar.
--- Da. Jandira.... Da. Jandira... Da. Jandira.... e chegando na porta da sala, sem ainda ser atendido, completou sua tarefa dizendo. ... Seu marido caiu no rio...
Imediatamente saíram da sala Afrânio e Ronaldo, que chegando na porta da sala, encontraram com Da. Jandira que vinha chegando da cozinha, toda apavorada.
--- Que foi menino?... que brincadeira é essa? Disse ela.
--- Não é brincadeira não senhora.... eu estava na ponte, quando ele caiu. Disse o menino.
--- Minha Nossa Senhora... será que ele está muito machucado?... alguém já o tirou de lá?
--- Calma Da. Jandira... eu vou correndo até lá... calma, tome um pouco de água com açúcar. Afrânio acabou de falar isso já no portão de sua casa, já saindo em direção ao rio. Ronaldo foi junto para ajudar no socorro.
A rua Wenceslau Brás, onde ficava a residência do Afrânio, era calçada com paralelepípedo até a esquina da praça Quitandinha. Daí pra frente ela seguia em chão batido e completamente irregular quanto à sua largura, isto é, ela seguia se afunilando e terminava num gramado pequeno que por sua vez, ficava limitado por um muro. Neste final ai, existia um caminho á direita, que passando por uma passarela de madeira que ficava por sobre o rio, interligava a rua da casa do Afrânio, com a rua São Jorge. A rua São Jorge por sua vez, começava na rua Marechal Floriano e terminava exatamente no rio, onde iniciava esta passarela. Os veículos podiam entrar nesta rua, porém tinham que retornar por ela mesma, pois a passarela só permitia a passagem de bicicletas e pedestres. À esquerda de quem saia da passarela para a rua São Jorge, ficava a casa onde morava Da. Jandira com seu marido Sr. Valdir, e foi indo para falar com sua esposa que estava trabalhando na casa de Afrânio, que ao se sentir mal, justamente em cima desta passarela, que ele então caíra dentro do leito do rio.
Afrânio chegou apavorado, mas já tinha um vizinho dentro do rio, segurando a cabeça do Seu Valdir, mas o corpo dele continuava dentro da água. Afrânio então gritou.
--- O quê aconteceu?... como está ele?....
--- Não sei não moço... mas me parece que está morto... aqui tem muito sangue, e ele não está respirando. Respondeu o senhor que estava com o acidentado.
Mais que depressa desceram Afrânio e Ronaldo, enquanto Da. Jandira acabava de chegar em cima da passarela. Junto com ela, agora já estavam as vizinhas que moravam ali perto. Todas muito apreensivas, e muitas delas já esperando até o pior.
Com muita dificuldade, os dois conseguiram chegar junto ao corpo do Sr. Valdir, e agachando, Afrânio foi falando.
--- Como ele está?
--- Olha aqui... disse o senhor que estava segurando-o. ... tem um buraco muito grande aqui na cabeça...
--- Nossa!... foi afundamento craniano... disse  Ronaldo
--- Ele está morto ... veja aqui... parece que fraturou o pescoço.... alem de já não ter mais pulsação. Disse Afrânio ao fazer alguns rápidos exames.
--- Vamos tirar ele daqui... Eu só não o tirei antes porque sozinho eu não ia agüentar. Disse o homem.
--- Vamos sim... disse Afrânio, mas antes de iniciar o resgate, virou para o pessoal que estava em cima da passarela e pediu para que alguém providenciasse um médico, para o Sr. Valdir. Depois então começou a ajudar a retirar o corpo da água.
Quando, conseguiram com ajuda de mais pessoas, colocar o corpo em cima, e no chão da rua, Da. Jandira se desabou por cima dele chorando.
--- Ô Valdir... como você foi deixar acontecer isso.... responda anda!... Da. Jandira, sacudia o corpo do marido, tentando obter respostas.
Afrânio se dirigindo a uma vizinha de Da. Jandira, falou baixinho.
--- Sra.?, Por favor,... Dê uma assistência a ela porque seu marido está morto. Ele fraturou a coluna vertebral. Foi instantâneo.
Esta senhora então ao chegar ao lado da viúva, disse vamos para casa deixe que os homens o tragam para dentro. Ele não sofreu não, foi rápido demais...
--- Mas ele morreu?... Não foram chamar um médico?... E continuou a chorar, agora já amparada por duas vizinhas.
--- Vamos minha filha... Foi a vontade de Deus... Ele sabe o que faz... Disse a outra enquanto caminhavam para dentro da casa.
Afrânio, Ronaldo e mais o senhor que ajudou dentro do rio estavam com as roupas e os sapatos encharcados, mesmo assim com ajuda de mais um levaram o corpo para dentro da residência. Quando o colocaram em cima da mesa, chegou o médico que fora chamado. Este entrando na casa, e sem mesmo cumprimentar ninguém, foi pegando seu estetoscópio e começando a tarefa de auscultar o morto. E depois de algum momento, disse.
--- É... não se pode fazer mais nada... o corpo já está começando a enrijecer-se. E pegando um bloco que retirou de sua maleta, começou a escrever. Era o atestado de óbito, porque sem ele não se podia providenciar nada.
Da. Jandira era bem mais nova do que seu marido, e era muito bonita. Os dois eram naturais de São Brás de Suaçuí, onde se casaram a pouco mais de quatro anos, e Deus em sua sapiência, não os haviam premiados com filhos. Para o Sr Valdir, com 65 anos, este tinha sido o segundo casamento, pois havia se enviuvado de um outro que também fora estéreo, mas que durara muito mais tempo. Por falta de mais opções talvez, Da. Jandira aceitou seu pedido de casamento, talvez mais para fugir do fantasma da solteirice, do que mesmo por amor. Mas nem por isso, deixou de dedicar-lhe seu carinho e o respeito que sempre mereceu. Vieram residir em Lafaiete, logo após o casamento, e foram morar justamente naquela casa, de onde agora ele partiria.
Para ajudar seu marido na despesa, Da. Jandira tinha arranjado este emprego de governanta na casa de Afrânio, e este, por sua vez, tentava ajudar o casal dentro daquilo que podia. Tanto que o Sr. Valdir todo dia almoçava na casa dele, e ele via nisso mais uma maneira de ajudar o casal.
O féretro saiu da residência ás dezesseis horas do dia seguinte, e estava fazendo muito calor. Desde o caixão até a cova no cemitério, tudo foi preparado pelo Afrânio. Foi ele quem comprou a sepultura junto ao Cônego Moreira, pois o campo Santo de Lafaiete, pertence à jurisdição da paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Foi ele quem providenciou a encomendação do corpo na própria casa, procurando para isso o padre Antônio José ferreira, que  neste momento também está acompanhando o cortejo fúnebre, rezando o terço com seus acompanhantes.
Não havia muita gente envolvida neste acompanhamento não, somente alguns poucos vizinhos mais chegados, e uns parentes que vieram de sua terra natal. Da. Jandira seguia junto à cabeça do caixão, amparada por parentes. Afrânio e Ronaldo se revezavam junto às alças da urna, pois havia poucos homens para aquela tarefa.
Depois do adeus final, Afrânio procurou o padre para dizer-lhe que o carro de praça estava na porta do cemitério esperando por ele, afim de leva-lo de volta à sua residência. Depois disso, procurou Da. Jandira, e cumprimentou-a mais uma vez.
--- Da. Jandira... Mais uma vez aceite meus sinceros pêsames.
--- Obrigada... disse ela.
--- Agora a senhora não deve se preocupar com nada... fique uns dias em casa se precisar, e só volte quando achar que deve... mas se por um acaso neste meio tempo precisar de alguma coisa pode me procurar... e... Fique com Deus. Ah!... eu já ia me esquecendo... tem um carro de praça, lá fora para leva-la para casa... é um carro verde... e o motorista se chama Donga... e...  e  já está pago.
Com a voz meio embargada, Da. Jandira se limitou a dizer mais uma vez, um muito obrigado, quase inaudível. Afrânio então chamando Ronaldo, desceram a alameda Dois de Novembro e foram para suas casas.










                                Capítulo 04



A semana passou com muitos acontecimentos, e a revolução, aos olhos dos militares, “ia muito bem, obrigado”. Na terça feira mesmo, dia 15, o Presidente Marechal Castelo Branco e o Vice, José Maria Alkmim, eleitos indiretamente pelo Congresso no dia 11, tomaram posse. A política de repressão iniciada no dia dois continuava a todo vapor, e a cada dia, a população ficava sabendo de novas pessoas que tinham sido presas.
Na Sexta feira dia 18, na Matriz de São Sebastião, foi celebrada a missa de sétimo dia em sufrágio da alma de Valdir Gomes da Silva, às sete horas da manhã.
Da. Jandira que ficou sem trabalhar naquela semana, procurou uma outra casa para morar. Apesar dos apelos da família no sentido de que ela deveria voltar para sua terra, uma vez que agora estava viúva, ela preferiu optar por continuar em Lafaiete, pois já tinha se adaptado à cidade, onde já tinha um emprego definido.
De forma que depois de três dias da  realização do enterro, ela se mudou para  uma casa que ficava situada logo no inicio da Avenida Furtado. Era uma casa mais simples que a antiga, e pensava pagar o aluguel com o que ia sobrar da pensão do marido, pois com o que ganhava de salário por trabalhar para Afrânio, pretendia fazer sua despesa e ainda guardar um pouco.
De forma que neste sábado, estando já com a vida mais tranqüilo, ela então compareceu ao trabalho na casa do professor.
Ronaldo por sua vez, tinha resolvido não comparecer para o já tradicional bate-papo dos sábados, imaginando que sem a presença de Da. Jandira na casa, o professor poderia ficar constrangido com a bagunça que certamente, ele teria aprontado por lá. De forma que naquela tarde resolveu dar um pulo até o bar do “Seu” Digno, o espanhol, que ficava na rua Wenceslau Brás, do outro lado da Praça Quitandinha, para jogar sinuca com seus amigos.
Estava ele lá, esperando sua vez de jogar, encostado na porta, quando o Afrânio passou vindo da rua, onde fora fazer compras. Este, vendo seu amigo na porta do bar, resolveu abordá-lo.  Colocando então as sacolas no chão, perguntou a Ronaldo, que ainda não o tinha notado.
--- Como é?... você deve ter ido lá em casa e eu estava pra rua, não é?... disse isso esbarrando a mão no ombro do garoto.
--- Ô professor... Como vai o senhor?....Falou Ronaldo sorrindo e ao mesmo tempo se desculpando. ...não... eu não fui hoje não... eu achei que devia esperar Da. Jandira começar a trabalhar novamente...
--- Não... por causa disso não..., vamos lá?... E depois ela já está trabalhando, tanto que eu  fui até fazer as compras que ela pediu.... vamos?...  se não a gente perde o “fio da meada”.
--- Se o senhor acha que está tudo bem... então vamos. E Ronaldo então se despedindo dos amigos, pegou uma das sacolas e seguiu com ele.
Chegando na casa, enquanto Ronaldo foi para a sala de visitas, Afrânio foi até a cozinha e entregou o que havia comprado para Da. Jandira. Na volta, chegando na sala, disse para o rapaz que já o aguardava.
--- Você não sabe com que ansiedade eu estava te esperando hoje... é...  eu tive um sonho no meio da semana, e não via a hora de te contar.
--- Bom ou ruim?... Perguntou Ronaldo
--- Na verdade eu mesmo não sei... tem hora que eu acho que nem foi um sonho, e sim uma visão.
--- Não brinca?... Então conte logo porque já estou curioso.
--- Bem... É certo que eu fiquei até tarde folheando estes livros, e depois quando fui deitar, ainda fiquei pensando nestas histórias até dormir. Mas depois de mais ou menos uma meia hora eu acordei todo suado. E para que não  me esquecesse dos detalhes, peguei um pedaço de papel e fiz umas anotações. A coisa é mais ou menos assim... eu me lembro que estava numa casa escura e tinha muitos objetos velhos jogados pelos cantos. As paredes não eram altas. E direcionando os olhos por sobre estes objetos jogados, vi muita teia de aranha e muita poeira por cima deles. Lembro-me também de uma coisa que parecia uma janela, e tinha um arco em tijolos por cima, sem reboco.. Quando abri um malão antigo e bastante velho, o Santo Graal estava dentro dele, junto com outras coisas que não me lembro o que eram... Eu não consegui pega-lo, bem que eu tentei... mas nesta hora houve um estrondo e um clarão, bem fortes... e ai eu acordei.
--- Bem isto tem relação com a saturação de pensamentos que o senhor submeteu o cérebro antes de pegar no sono. Disse Ronaldo tentando explicar o sonho.
--- Disso eu tenho certeza... Agora só não compreendo como este quadro foi montado, se nunca passou pela minha cabeça, cenas iguais a estas.
--- Professor... Desculpe a pergunta, mas... o senhor não está deixando este desejo de encontrar este cálice, se tornar uma gigantesca obsessão, não?
--- Pode até ser que esteja acontecendo isso, mas cada ser humano tem lá sua obsessão de uma ou de outra forma. E graças a Deus, a minha não causa dano a ninguém, até porque ela preenche bem o meu tempo.
--- Mas me diga então uma coisa... o quê o senhor pensa ganhar descobrindo o paradeiro deste cálice?
--- Nada... apenas gostaria de possuir esta relíquia que passou nas mãos de nosso Senhor Jesus Cristo, há quase dois mil anos... tocar naquela borda onde Ele colocou os lábios... olha aqui... só de pensar nisto, veja como me arrepio todo. Mas... eu te falei no inicio, lembra? Que eu era mais que fascinado pelo assunto? Ta lembrado?
--- Tudo bem, mas... o quê que o senhor tem de concreto sobre a existência dele, que o mantém assim tão aceso?.
--- Olha Ronaldo, na verdade o que eu tenho é um amontoado de informações e algumas conclusões próprias.  Coisas que não aparecem assim ao acaso...
--- Por exemplo? Indagou Ronaldo.
--- Bom... veja bem... são vários os autores e não apenas um, que associam o Santo Graal com a Távula Redonda. Como por exemplo... Richard Wagner associa Sir Parsifal como um cavaleiro que anda por toda a Inglaterra, em busca dele. Chrétien, é outro que também associa este mesmo cavaleiro, só que o primeiro fez uma ópera e o segundo um romance. Sir Bors e Sir Galahad foram também usados com esta finalidade, por outros autores...  e depois... com a invasão romana, um pergaminho foi encontrado e nele fora mencionado a Inglaterra como o lugar mais provável, para onde ele foi levado... A descrição de uma visão dele, pelos Cavaleiros da Távula redonda, eu já te falei que não concordo com ela... Sir Thomas Malory, foi o escritor que mais escreveu sobre Artur. E segundo sua narrativa, são o filho de Lancelot, Galahad e Sir Bors que, como Parsifal de Chrétien, encontram o Santo Graal... E na minha opinião, se fosse uma mentira, ela não perduraria tanto tempo assim...
Estava ainda o professor falando, quando Da. Jandira chegou na porta da sala, e ali mesmo em pé, pediu licença e falou.
--- Professor... com licença... Eu não tive tempo para conversar com o senhor, mas... eu queria lhe dizer que... bem.... primeiro que eu mudei daquela casa da rua São Jorge... agora estou morando ali no inicio da Avenida Furtado...
--- Ah! é?... e a casa é boa? Perguntou Afrânio interrompendo-a.
--- Não que ela seja melhor, mas... para mim agora quanto menor ela for, melhor... Respondeu ela, e continuou. ...e segundo, como eu estava falando... é que agora como estou vivendo sozinha, se o senhor quiser eu posso vir também aos domingos. Porque até mesmo pra mim vai ser bom, pelo menos... eu fico tendo alguma coisa para preencher meu tempo. O que o Sr. acha?... ah!, eu ia esquecendo.... não precisa pensar que eu quero aumento de salário por isso não... eu é que estou me oferecendo... só isso.
--- Pois não Da. Jandira... para mim é até melhor... a senhora é quem sabe... se a senhora quiser vir... tudo bem...
--- Então eu já vou... até amanhã... até amanhã Ronaldo. Disse ela antes de sair.
Da. Jandira então se despediu e saiu na porta da sala. Ronaldo que assistira a conversa dos dois, antes que o professor voltasse ao assunto que estavam falando, indagou.
--- Como ela é bonita.... hein?
--- É... ela não é de se jogar fora, não. respondeu Afrânio.
                                    Esta reposta abriu o clima entre os dois para uma conversa mais direta, e Ronaldo então aproveitou a oportunidade.
--- Professor... desculpe a minha intromissão mas....  porque o senhor não se casa com ela?.
                                    A pergunta enrubesceu a face dele, mas embora gaguejando um pouco, respondeu.
--- Bem... casamento é uma coisa muito séria... e ...a gente não resolve isto assim não. precisa de um estudo...
--- Ah!, professor...espera aí... entre jovens, tudo bem.... mas entre pessoas adultas, não vejo tanta necessidade disso, não... o que manda é a experiência acumulada pelos dois.
                                    Afrânio riu, e perdendo um pouco da vergonha de estar conversando sobre aquele assunto com um garoto, respondeu.
--- Tá me chamando de velho?...
--- Não... absolutamente... apenas acho que os adultos complicam muito as coisas.
--- Acontece Ronaldo... que os jovens são dotados de voluptuosidade e por isso, vêem a vida por um outro angulo... talvez até um angulo de um prisma mágico. Agora nós os mais adultos pensamos mais para tomar uma decisão.
--- E não será por isso que o senhor está solteiro até hoje? Isto é, não será o fato de pensar muito, o principal culpado desta solidão?... E notando que avançou o sinal, completou. Desculpe-me professor, esqueça o que eu acabei de falar... Eu não tenho, e nem o senhor me deu o direito para ficar me metendo em sua vida. Vamos continuar nossa conversa sobre o...
  Apesar da pergunta ter sido um pouco indiscreta, o professor não se incomodou e dando até uma demonstração de que estava gostando do rumo da conversa, antecipou ao Ronaldo desculpando-o e respondendo sua indagação.
--- Talvez... não..., talvez não..., talvez não é a palavra certa. O que está acontecendo aqui nesta nossa conversa, é na verdade mais um choque de gerações. É a maneira como fomos criados e ao mesmo tempo como somos cobrados.
--- Professor...? Deixa pra lá... Vamos continuar nossa conversa anterior?.
--- Pode perguntar Ronaldo... Aliás, eu acho até que sei o que você ia perguntar.
--- Bem... já que o senhor insiste... mas... responda se quiser... O senhor alguma vez amou alguém? Agora foi o garoto que ficou enrubescido.
--- Não falei?... eu já sabia que você ia perguntar isso. De um modo geral, todos perguntam.
--- Mas... por favor, responda se quiser. Reafirmou o garoto.
--- Tudo bem... não se preocupe... as pessoas acham que eu faço disso um mistério, mas não é bem assim... Eu tive um grande amor... mas ele aconteceu fora do tempo...
--- Como assim, fora do tempo?
--- Coisas que na minha época eram de suma importância... e que hoje pelo visto, já não são  mais imprescindível...
--- Professor... confesso, que ainda não o entendi...
--- É que comecei a namorar muito cedo... E um belo dia o pai dela descobriu o nosso namoro. Como eu ainda não tinha emprego, pois nem dezoito anos ainda tinha feito, o pai fez com que ela terminasse comigo e a mandou para casa de parentes no Rio de Janeiro.
--- Mas o senhor deixou barato assim?...
--- A principio eu achei que aquilo não ia dar em nada, mas em menos de um ano ele pediu sua transferência para lá e se mudou com o restante da família. Ele trabalhava no Banco do Brasil. E eu gostava tanto dela, que nunca mais quis namorar moça alguma.
--- Mas o senhor não procurou por ela mais tarde.
--- Eu ainda fiquei desempregado por mais dois anos. Isto contribuiu em muito para que eu não esboçasse nenhuma reação, por dois motivos. Primeiro, porque não tinha mesmo condições de custear tal viajem,  nesta época eu só tinha minha mãe e ela era empregada doméstica.  Segundo, porque eu recebi depois de um ano e meio o convite de casamento dela. Não acredito que tenha sido ela quem tenha me mandado, mas sim o próprio pai. Contudo, depois desta palhaçada toda, uma verdade estava bem posicionada: se ela estava casando tão rápido assim, era porque não tinha o “amor tão grande” que jurara por várias veze,s tê-lo por mim. E este raciocínio foi suficiente.
--- É... realmente a coisa ficou complicada.
--- Logo depois disso minha mãe faleceu... e foi enterrada com favor da prefeitura, em uma vala anônima... nesta ocasião se não fosse Deus entrar no meio, eu tinha tomado outro rumo.
--- Como assim?
--- Veja bem... um mês antes da minha mãe falecer, eu havia prestado concurso no Banco... este Banco que trabalho até hoje. Dois dias depois do falecimento dela, recebi um telegrama comunicando que tinha passado no concurso, e pedia para que me apresentasse. A casa onde morava, era alugada e o senhorio já tinha me notificado para desocupa-la. Conversei então numa pensão e mostrei ao proprietário o telegrama do banco. Como ele era uma pessoa caridosa, me deu um crédito. Ali então morei por quase um ano. Mas depois  aluguei um barraco pequeno, e daí por diante fui melhorando de vida.
--- É professor... se já o admirava antes ... agora o admiro muito mais... E da namorada? Nunca mais soube?
--- Não... mas a medida que fui me amadurecendo, fui percebendo que o impecilho colocado pelo pai entre nós era de ordem puramente social. E se algum dia nós viéssemos a nos casar, ou eu seria eternamente humilhado por sua família, ou o casamento acabaria de forma abrupta. Foi melhor para nós a separação. Contudo, nunca mais quis me compromissar com ninguém...
--- Bem professor... a conversa está muito boa, mas tenho que ir agora... Disse Ronaldo se levantando.
--- Ainda é cedo, vamos lá dentro tomar um café... é rápido, Da. Jandira deixou tudo pronto. Convidou Afrânio.
--- Não senhor, muito obrigado... outro dia eu aceito. É que nós ficamos entretidos aqui e o tempo passou. Já são quase seis horas da tarde e eu ainda vou tomar banho para sair à noite.
--- Vai ao cinema? Qual filme ?
--- Não... chegou um parque de diversões aqui em Lafaiete, muito bom... o Parque Guanabara... ele está instalado na Praça da Bandeira. E é lá que estamos indo todas as noites. O parque fica lotado. Aparece lá também...disse Ronaldo caminhando para a porta de saída.
--- Eu vou pensar... se eu animar a sair, dou uma chegada lá.
--- Então até logo mais, a gente se vê por lá se o senhor resolver aparecer... Mas pense também no que eu falei. Nunca é tarde demais para começar.
                                    Afrânio sorriu pela insistência de Ronaldo, mas se limitou apenas em responder um até logo.
                                    Com a saída do garoto, Afrânio foi até a cozinha fazer um lanche, mas como já estava escurecendo, aproveitou para sair à porta que dava acesso para o quintal, a fim de fechar o quarto dos fundos, onde Da. Jandira usava como lavanderia. Ao entrar para trancar a janela, viu num varal improvisado ali na diagonal do quarto, umas roupas coloridas secando. As cores das roupas chamou sua atenção, e conferindo, viu que se tratava de roupas intimas de mulher. Afrânio ao vê-las ali, sorriu e disse para si mesmo. “ agora como ela trabalha até aos domingos, ela tem de lavar suas roupas aqui também”. E ao ficar ali vendo um soutien e uma calcinha, lembrou do que o Ronaldo tinha lhe falado e sorriu. Caminhando pensativo para seu alvo inicial que era a janela, talvez sugestionado pelas imagens que tinha visto, antes de fecha-la, disse:
--- É... quem sabe.






                                              
                                              
                                              
                                               Capítulo 05
                                              


                                                                                
                                                
                                               O governo brasileiro, a cada dia vivido após o 1º de abril, se desviava paulatinamente da democracia e se firmava como uma ditadura militar. Hoje, quatro meses depois do golpe de estado, alem de romper as relações diplomáticas com Cuba, prorrogou também o mandato de seu presidente, para mais três anos, isto é, até 1967. A atmosfera criada até agora, era de puro medo e terror. Não se podia falar nada e aquele que descuidava da língua, corria risco de ser preso, sob o rótulo de comunista.
                                    Ronaldo continuou sua vida alternando as poucas opções de lazer, que a cidade tinha para oferecer a um jovem de sua idade. E estas opções não ia muito mais, além de um Parque de Diversões, ocasional, e as sessões variadas de quatro cinemas. A assiduidade dos encontros com seu professor nos finais de semana, não só o enriqueceu com os conhecimentos sobre a história do Rei Artur, como também da própria história inglesa. Tanto, que agora o professor já não estava mais sozinho em seu sonho de buscar o Santo Graal, Ronaldo já compartilhava este desejo junto com ele.
                                    Afrânio por sua vez, apesar de ter se esquivado dos torpedos que Ronaldo atirou contra ele, carregados de “Da. Jandira”, acabou tendo sua “casamata estourada”. E o bichinho do amor começou a lhe trazer uma certa instabilidade emocional. Continuava respeitoso e educado como sempre o fora, contudo tinha ficado muito mais atencioso com a governanta, do que havia sido antes dela se enviuvar.
                                    Da. Jandira na verdade sentia falta de seu marido unicamente pela compaixão que todos nós temos dentro de nós mesmos, uma vez que o pobre homem tinha falecido com uma morte muito fora do trivial. No entanto, no que tange aos sentimentos do coração, muito pouco tinha porque chorar, pois era notório que a diferença de idade entre o casal extinto mostrava muito bem que o casamento havia acontecido mais para conveniência dos dois, do que mesmo por amor. E apesar de ser uma mulher simples oriunda da zona rural, tinha perspicácia suficiente para notar as reações de Afrânio e suas “arrastação de asas”, qual frango dentro do galinheiro, com relação a ela. Se isto tivesse ocorrido dentro do tempo em que durou seu casamento com o Sr. Valdir, não tenho dúvidas que ela teria pedido demissão de seu emprego, na tentativa de resguardar sua honra e a honra do falecido. Contudo, como este período agora não colocava sua honradez em dúvida, no fundo, no fundo mesmo, ela até que estava mais propensa a aceitar do que recusar uma proposta de um novo casamento, caso esta hipótese viesse a se confirmar.
Mas em meio a este quebra-cabeça, composto de meras suspeitas por parte de Da. Jandira e imagens inesquecíveis que Afrânio vira na lavanderia de sua casa, e que por sinal, haviam lhe suscitado novamente seu lado romântico, mais um fim de semana tinha chegado para os três.
A transição da noite de sexta feira para a manhã de Sábado, não foi fácil para Afrânio não, pois durante a semana toda tentou sufocar sem sucesso, o principio de erupção que seu “vulcão interno” fazia se manifestar. E não aguentando mais a pressão que seu coração exercia sobre si, no ápice da noite de sexta feira então, deixando-se levar pelo enlevo da situação, resolveu tirar a “teia de aranha” da radiola Phillips que há muito já não era ligada. E o repertório ouvido não podia ser outro senão, “Juramento” com Carlos Alberto; “Brigas” com Altemar Dutra; “La Mer”, “Theme From a Summer Place” com Billy Vaughn, “Argumento” com Nelson Gonçalves, etc. e à medida que estas melodias iam entrando em seu coração, automaticamente eram expulsos os traumas e os medos que haviam se enraizados por ocasião de seu desastrado namoro com Vilma. E qual garoto, sentindo-se cheio de amor pra dar, sentia seu peito encher de coragem e ansiedade, para dizer para Da. Jandira no dia seguinte que: “Se ninguém é totalidade de si mesmo, ela então se tornava agora seu complemento”. E vivendo este êxtase, construiu e ensaiou milhares de frases para declarar sua intenção, mas não deixando de se preocupar em deixar transparecer o seu lado responsável e sincero, todavia, de uma forma mais extrovertida.
A campainha da casa tocou e Afrânio abriu os olhos. Sentado no sofá da sala tinha adormecido. Sua radiola zumbia sozinha, pois ficara ligada depois de tocar o último long-play que fazia parte de uma pilha de elepês, que estava no pino central do prato.
--- É ela... nossa!... já são sete horas. Ih!... que bagunça está aqui...
  Afrânio se levantou da poltrona e foi abrir a porta para Da. Jandira, que tocara a sineta elétrica pela segunda vez. E abrindo-a, a governanta adentrou na saleta. Notando ela que seu patrão estava ainda com a roupa que usava no dia anterior, perguntou.
--- Bom dia “Seu” Afrânio... O que houve com o senhor?... Parece que não dormiu, aconteceu alguma coisa?
  Afrânio que não esperava tal pergunta ficou meio desconcertado, e tentando dissimular a situação, disse.
--- Não... e-eu é que acordei cedo...  e a-até que-queria falar com a senhora...
--- Pois não... disse ela ainda meia assustada.
--- É que... que... é sobre o pão... é... o pão, a senhora pode deixar que eu mesmo vou na padaria hoje. A timidez de Afrânio fez com que ele mudasse de ideia repentinamente.
--- Mas... “seu” Afrânio, não estou entendendo... O senhor sabe que quando chego pela manhã, eu já passo na padaria e o pego... a ele aqui. Disse ela mostrando-lhe o embrulho.
  Quando Da. Jandira disse isso, Afrânio que já estava meio trêmulo, ficou corado como um tomate, e não tendo como continuar a mudança brusca da conversa encostou a porta que ainda segurava, e virando para a governanta disse.
--- Da Jandira... com todo respeito do mundo que a senhora merece, mas...  sente-se aí, que eu quero falar com a senhora.
  E puxando a cadeira, fez com que ela se sentasse. E sentando-se noutra guardando relativa distância, falou.
--- Sabe de uma coisa... bem.... como a senhora pode ver... eu nem dormi direito esta noite... acontece que fiquei até tarde ouvindo discos e acabei dormindo sentado na poltrona. Mas... o que eu quero falar não é sobre isso não... é... bem... é que... diacho!... eu fiquei até tarde pensando numa maneira para falar com a senhora, mas.... sumiu tudo... deu um branco na minha cabeça...
--- Olha “Seu” Afrânio... se o senhor está querendo me dispensar, e está sem jeito, eu entendo perfeitamente... aliás, eu sei que os tempos estão cada vez mais difíceis, e o senhor foi muito bom para mim... de forma que eu entendo perfeitamente...
--- Não Jandira... disse Afrânio já todo embaralhado, e continuou. Quer dizer... Da. Jandira, desculpe-me, mas não é nada disso... pode tirar isto da cabeça... o que eu quero dizer é que... puxa vida... ontem ali na sala, me pareceu a coisa mais fácil do mundo... e agora a mais difícil...sabe?.. é.. é que eu estou querendo casar.
--- Ah! não brinca!... disse ela sorrindo. E quando virá então a patroa... puxa vida o senhor é muito misterioso... sabe que eu nunca desconfiei que o senhor tinha namorada...
--- Por favor Da. Jandira... pare com isso, porque não é nada disso que a senhora está pensando, não. Na realidade é... é... é com a senhora que eu quero casar, pronto. Agora já falei...
--- Comigo!?... nossa!... e agora?, o quê que eu falo?... nossa!... e levando a mão na boca, ficou com sua face avermelhada.
--- Desapontada comigo, não é?... interrompeu Afrânio. Eu sabia... porque não fiquei calado?... mas fui dar ouvidos ao Ronaldo... viu só no deu?...
--- Não... não é isso não... é que eu não estava preparada...
--- Pois é... e depois a senhora ficou viuva tem pouco tempo... eu não sei como eu pude deixar me envolver a este ponto...
--- Não... não é isso não... bem... será que um casamento agora... seria bom?... não será muito cedo?...
--- Se está me perguntando, já sabe bem qual é  minha resposta... e depois... a vida acaba para quem morre... quem fica tem mais é que encontrar uma maneira mais fácil de vivê-la... e depois... bem, não vejo nenhuma desonra ao finado, não.
--- Bem... quanto a isso, vale mais o que está em nossa consciência... mas mesmo assim.... eu não sei o que dizer... se ... se eu aceitar?... quando é que está pretendendo...
--- Hoje...respondeu ele.
--- Santo Deus... eu nunca vi isso... porque essa pressa?.
--- Da. Jandira... agora que passou o nervosismo, vamos raciocinar como duas pessoas adultas e sensatas. Veja bem... eu já estou com quarenta e oito anos, e não tenho que comunicar  minha decisão a ninguém. A senhora, da mesma forma que eu, não precisa pedir o consentimento para pessoa alguma. Se a senhora permanecer aqui em casa trabalhando, e os vizinhos desconfiarem que estamos... é... hum!... namorando, aí é que vão começar a falar mesmo. Por outro lado, se casarmos de surpresa, ai não seremos alvos de nenhuma fofoca...
--- Bem... na verdade eu não sei o que falar... Disse ela mantendo a cabeça baixa desde que a conversa inclinou para o lado dela.
--- Olha... a senhora não precisa se encabular não... se... se não concorda com o meu pedido, é só dizer não... e tudo bem.
 --- Não... eu não estou descartando seu pedido não, mas... esta rapidez toda... é que eu não consigo entender.
--- Devo entender isto... como aceito o meu pedido? Interrogou Afrânio.
--- Não sei... acho que sim... mas... com uma condição. Respondeu ela mantendo a cabeça baixa e ficando mais rubra do que quando começou a conversa.
--- E qual é a condição? Perguntou ele.
--- Me dê uns dias para pelo menos assentar minha cabeça no lugar, porque acho que sou a primeira mulher no mundo a ser pedida em casamento às sete horas da manhã. Esta fala provocou o riso dos dois. E depois então de um breve tempo ela continuou. ... eu não quero morar aqui não... veja bem, eu conheço quase todo mundo aqui... A Da. Maria do Sr. Leôncio, a esposa do professor Luís Radamés, quase toda a família dos Beatos... e de forma que para que eu não fique muito constrangida, prefiro morar em outro lugar...
--- Tudo bem... por mim tudo bem, posso até começar a procurar outra casa hoje mesmo. Disse o professor.
--- Ah!... e tem outra coisa.... eu vou trabalhar hoje, porque já estou aqui, mas de amanhã em diante não virei mais... logo que o Sr. mudar, a gente casa então no civil... depois do civil... eu... é... eu mudo para sua casa... e esperamos os papéis correrem na igreja. E quando tiver cumprido o prazo que ela exige, ai então casaremos em uma cerimônia simples, num dia de semana e na presença somente da família e os padrinhos, porque eu não quero festa nenhuma. O Sr. concorda?
--- Claro... concordo em gênero, numero e grau...respondeu ele.
--- O quê quer dizer isto? Perguntou ela séria.
--- Nada... nada...brincadeirinha...  Mas agora sou eu que ponho uma segunda condição... a de que de agora em diante acabemos de vez com este tratamento de Sr., Sra., Da. Jandira e “Seu” Afrânio...  certo?
--- Certo... mas só a partir de amanhã... porque eu não quero que vizinho nenhum desconfie de nada.
--- Tudo bem... então a partir de amanhã, eu irei á noite em sua casa para a gente nam... isto é, conversar... sobre a nova situação, e sobre as providência que devemos tomar, tais como uma nova casa etc.
--- Tudo bem... agora deixa eu cuidar da minha vida, porque tenho muitas coisas para fazer. E dizendo isso ela foi para a cozinha.
Afrânio então foi para seu quarto a fim de trocar de roupa pois as suas estavam bem amarrotadas, em virtude de ter passado a noite no sofá da sala.
Às duas horas em ponto chegou Ronaldo, para o encontro arturiano de todo Sábado. Recebido na saleta por Afrânio, logo o encaminhou para a sala de visitas onde normalmente acontecia este  rotineiro bate-papo. Tão logo se sentaram, Ronaldo foi falando.
--- Hoje quem tem novidades, sou eu professor...
--- Você pode até ter descoberto onde está Santo Graal, mas primeiro vai ter de ouvir as minhas novidades. Disse Afrânio portando um sorriso e interrompendo o garoto.
--- Pois não, fale o senhor então, mas duvido que as suas sejam melhores que as minhas.
--- Bem... vejamos por onde começo... são tantas, que confesso estar até meio encabulado. Mas... bem.... acho que vou me casar...
--- Pôxa professor!... que bacana!... e... posso saber com quem?.
--- Lógico... pois você vai ser meu padrinho de casamento.
--- Quem eu?... O senhor tá brincando...
--- Não... não estou não... isto é, a menos que você não queira me dar o prazer de aceitar o convite.
--- Espere aí professor... acho bom o senhor contar tudo do inicio, porque até agora não consegui me ligar em nada... 
--- Tudo bem.... sabe o que é?.... É simples. Acontece que desde o dia que você começou a me dirigir suas indiretas sobre um possível casamento, que a minha cabeça já não foi mais a mesma. E hoje... é...  hoje então,  resolvi acabar com este drama e pedi logo o casamento.
--- Espera aí... a noiva então deve ser a Da. Jandira? Indagou Ronaldo.
--- Exatamente. Acertou na mosca.
--- E aí?...  ela aceitou?
--- Sim... e ele vai acontecer mais rápido do que você imagina...
--- È?... e quando?.
--- Bem, por imposição dela, eu preciso alugar uma outra casa... ela não quer casar e morar aqui não. E eu estava contando com você, para me dar uma mãozinha nesta tarefa...
--- Perfeitamente professor...  E quando o senhor vai querer sair para procurar?
--- Se você estiver animado a dar umas voltas por ai... Eu diria que ainda hoje.
--- Por mim tudo bem...
--- Então me aguarde um pouco... eu só vou trocar de roupas.        Ronaldo ficou sentado na sala, tentando se colocar no lugar de Afrânio, visando com isso entender aquela esfuziante alegria, que estava estampada no rosto dele.
--- Olá Ronaldo... está satisfeito agora com a confusão que você arranjou?. Disse sorrindo Da. Jandira ao chegar à porta da sala.
--- Ôi Da. Jandira... Como vai a senhora?... Isto é, como vai não, porque eu posso muito bem imaginar como a senhora está se sentindo... o professor me contou a novidade.
--- E eu por acaso não ouvi ele te contar? Disse ela ainda com um sorriso nos lábios. E continuou.  Você é que foi o culpado disso tudo.
--- Eu apenas “joguei o sapo na água”, não era isso que ele queria... disse Ronaldo, também com um sorriso.
--- E ainda por cima é cínico. Por acaso alguém te falou que eu queria me casar outra vez?
--- Não... isso não, mas de que adiantava o professor ficar sofrendo num canto, e a senhora no outro... assim pelo menos vocês podem sofrer juntos... não é melhor assim?.
--- O que te levou a fazer isso? Perguntou ela.
--- A principio... foi apenas especulação minha... Mas depois do acontecido nesta semana, eu agora tenho certeza que vocês iam acabar se casando mesmo sem minha ajuda.
--- Como assim?... O que aconteceu de tão importante? Perguntou ela.
--- Foi um sonho que tive há alguns dias atrás. Eu até ia contar para o professor, mas parece que ele se endoidou de vez com esse casamento que nem quis me ouvir.
--- Que sonho? Eu posso saber? Perguntou ela.
--- É, que sonho? Perguntou o professor chegando novamente na sala, mas dando a entender que tinha escutado a conversa dos dois.
--- É... eu sonhei que estávamos nós três... eu, a senhora e o professor, procurando o Santo Graal em uma cidade pequena, cercada por uma montanha enorme.
--- O quê quer dizer Santo Graal? Perguntou ela.
--- Santo Graal é uma longa história, depois eu conto para vo... isto é, para a senhora. Agora a cidade cercada por montanhas, é muito comum na Inglaterra. Interviu o professor.
--- Mas aí é que está o enigma... os moradores desta cidade conversavam com a gente em português. Disse o garoto
--- Sabe o que eu vou fazer? eu vou é cuidar da minha vida, porque tenho muito o que fazer lá dentro. E depois, se eu ficar aqui escutando esta conversa, quem vai ficar biruta vai ser eu. Disse a ex-governanta, se dirigindo para o interior da casa.
--- O fato dos moradores da cidade falar português, talvez seja porque você não fala o inglês fluentemente. Disse o professor.
--- Mas professor, e a presença dela no sonho?. Disse Ronaldo apontando para o interior da casa. ...eu só fiquei sabendo deste possível casamento entre os senhores, agora...
--- É mas não se esqueça que por várias vezes você mesmo o insinuou... por isso ele podia muito bem estar em seu subconsciente.
--- Mas não é só isto não, tem me acontecido umas coisas muito esquisitas, como por exemplo a troca prematura dos gostos...  minha mãe disse que ela é muito comum nos jovens com idade entre 22 e 25 anos, e eu estou apenas com 17, ainda.
--- Mas... não necessariamente isto seja uma característica própria destas idades, pois, isto não só pode acontecer antes, como depois delas... mas o quê o está encabulando tanto assim?... ou melhor, o quê que você deixou de gostar, ou passou a gostar mais recentemente?  Perguntou Afrânio.
--- Chocolate... nunca gostei de chocolates, e no entanto agora tenho até sonhado quase todas as noites que estou comendo-os, e com bastante fartura.
--- Mas na sua idade, a atração por chocolates é muito comum... você é que demorou muito a se despertar para este prazer.
  E falando isso Afrânio se levantou e convidou Ronaldo para sair, conforme haviam combinado.


               


                                                         

                               Capítulo 06


A revolução que tanto apregoou a volta da Democracia no país, instalou uma verdadeira Ditadura Militar, regida pelo medo e o terror, cada vez mais declarados. Tanto que brasileiro nenhum tinha esperança de que alguma coisa fosse mudada com relação a isso. De forma tal, que a “grande revolução”, agora na boca do povo, não passava de uma piada. Ela se tornara a “Revolução da Mentira”. E para confirmar isto, basta lembrar que ela tinha acontecido no dia internacional da mentira, ou seja, no dia primeiro de abril.
Afrânio conseguiu alugar uma casa que ficava situada na rua Marechal Floriano, quase em frente ao pequeno largo que dava acesso à Cooperativa dos Ferroviários e à gruta de Nossa Senhora Aparecida, e ambas, junto à portaria dos empregados da Central do Brasil.
Com a casa alugada, providenciou logo sua mudança de endereço. De maneira tal que hoje, quinze dias depois daquela conversa com sua iminente consorte, estava ele já, descarregando suas tralhas neste novo endereço. E para isto estava lá não só ele como também seu amigo Ronaldo e sua futura esposa. A mudança tinha chegado no caminhão do velho “china”, um “Chevrolet Gigante”, que de gigante mesmo não tinha nada, pois na verdade era tão pequeno que teve que dar três viagens, duas por conta dos móveis do Afrânio e uma por conta dos de Jandira.
Enquanto Ronaldo e o professor ajeitavam e montavam o mobiliário dentro dos cômodos, Jandira cuidava-se em fazer um pequeno e rápido almoço, para pelo menos despistar os estômagos reclamantes.
Ao meio dia, depois de ter dispensado o velho fretista, e com parte da mobília já em seu devido lugar, Jandira então os chamou para aquela refeição tão esperada.
Os cômodos da casa não eram grandes, e muito menos a cozinha, portanto com toda aquela tranqueira de panelas, louças e mantimentos pelo chão, Jandira conseguiu livrar a metade da mesa onde serviu seu almoço feito ás pressas. Afrânio se sentou na cabeceira da mesa, enquanto Ronaldo se ajeitou no lado esquerdo, e Jandira então colocando em cima da mesa uma travessa de salada fria, uma de arroz, alguns bifes e uma terrina de feijão, foi para o tanque a fim de apressar a arrumação de sua cozinha. Afrânio e Ronaldo ficaram então esperando pela companhia dela à mesa, para começarem a comer. Como ela demorava Afrânio então chamou-a.
--- Jandira.!?... ô Jandira!?
--- ôi... respondeu ela chegando na porta da cozinha, já com as mãos toda envoltas em espuma de sabão.
--- Vem então... senão a comida vai esfriar.
  Jandira que ainda estava bastante sem jeito com aquela situação, respondeu mais sem jeito, ainda.
--- Não... vocês podem almoçar... eu vou dar um adiantamento aqui na lavagem destas louças... depois eu almoço...
--- Não senhora.... acabou aquele tempo de governanta.... faz favor... venha nos fazer companhia senão ninguém aqui vai comer. Concorda comigo Ronaldo?
--- Perfeitamente... e falando pra ela, ... Venha Da. Jandira senão quem vai embora sou eu, endossou as palavras do professor.
  Jandira então mais encabulada do que nunca, enxaguou suas mãos e se sentou também à mesa.
Durante a refeição, Ronaldo então perguntou onde ficaria o quarto deles, pois ele ia desencaixotar e armar aquela cama de casal, que a Casa de Móveis Confiança havia entregue pela manhã, enquanto ainda era tirada a mudança do caminhão do “china”. Fez-se um silêncio tumular. Nenhum dos dois ousou se pronunciar. Ronaldo então insistiu em sua pergunta e a resposta que ouviu de Afrânio foi um simples “depois nós resolvemos”.
  Lá pelas quatro horas da tarde, Ronaldo então percebendo que o grosso da mudança já estava no lugar, resolveu então se despedir e ir embora.
--- Bem professor... agora só falta mesmo aquela cama de casal para a gente armar... mas como o senhor não quer mesmo monta-la agora, eu então vou indo porque já está ficando tarde e minha mãe pode estar preocupada com o meu paradeiro, uma vez que nem para  almoçar eu fui em casa.
--- Pois não Ronaldo... Muito obrigado pela sua ajuda... E o que está faltando arrumar, tem que ser arrumado aos poucos... agora não adianta ter pressa.
  E falando assim o garoto então se dirigiu para a porta e gritando então um “até amanhã”, para Da. Jandira que estava na cozinha, despediu do professor e saiu.
  Afrânio acompanhou-o até à porta e esperando um pouco no portão, pensou consigo mesmo. “ agora que vamos ficar sozinhos, somente eu e ela, se eu não tomar a dianteira para quebrar o gelo, nós dois vamos ficar dentro desta casa, mais sem jeito que embrulho de mangas.”  E pensando assim voltou para dentro indo direto para a cozinha e bancando o extrovertido, disse para Jandira.
--- E como está se sentindo a minha princesa?
  Jandira que continuava lavando louças e colocando no armário, virou para ele e disse.
--- Humm!...pode tirar seu cavalinho da chuva professor, porque senão ele vai se molhar... a partir de hoje eu vou começar a dormir aqui, mas naquele quarto ali e sozinha... juntos só depois do casamento.
--- E quem é que está falando que vai ser diferente disso. Respondeu ele, tentando mostrar que não ficara decepcionado.
  E assim foi, durante os três dias que antecederam o casamento, a convivência dos dois não foi nada fácil, dentro daquela casa. Uma, porque Jandira tinha seus princípios religiosos, que não permitia ter nenhum tipo de intimidade fora do matrimônio. Outra, porque sendo ela de origem interiorana, era por natureza excessivamente desconfiada, e a qualquer palavreado “mais doce um pouco”, que Afrânio fizesse uso, ela já cortava sua iniciativa na raiz mesmo. E depois, o próprio professor já era muito introvertido para assuntos relativos a namoro.
Mas finalmente, depois de tantos desencontros e acanhamentos, chegou o dia do casamento no civil. Isto é, a mudança aconteceu no sábado e as núpcias aconteceu na terça-feira, e foi realizado no fórum da cidade.
Para apadrinhamento, Afrânio usou a amizade que tinha com um senhor muito respeitoso, dono de um bar que ficava situado ao lado da praça Quitandinha. Este senhor de nome Dígno Esteves Gonzales, era espanhol de naturalidade e brasileiro por adoção, e que por sinal era um dos poucos amigos que Afrânio poderia mesmo chamar para tal finalidade. E o próprio Ronaldo, seu mais recente amigo, que apesar de ainda ser menor, a lei facultava sua adesão ao convite.
Depois da cerimônia, Afrânio então convidou os dois padrinhos para um jantar em sua casa, onde Jandira tinha preparado com certa antecedência, para comemorar esta nova situação.
O jantar começou a ser servido às seis horas, e conversa vai conversa vem, depois de uma saborosa sobremesa que foi servida por volta das sete e meia, o Sr. Dígno se levantou e desejando muitas felicidades ao novo casal, agradeceu a recepção e se preparou para se retirar. Gesto este, que Ronaldo copiando do velho espanhol, e repetindo-o simultaneamente, aproveitou o ensejo e saiu junto com ele.
Afrânio que os levou até ao portão de sua casa, por um momento ficou ali esperando e colocando seu raciocínio em ordem. Depois entrando novamente em casa, foi até à estante e pegando o baralho, sentou-se à mesa da copa, e ficou brincando com suas cartas, enquanto Jandira terminava de lavar a louça.
Depois de muito tempo, Jandira terminou de lavar os quatro pratos alguns talheres e meia dúzia de baixelas, não tendo mais nada que fazer na cozinha, apareceu na copa, onde pacientemente Afrânio brincava com o baralho.
--- Vem Jandira... senta aqui e vamos jogar um pouco de cartas. Disse o professor tentando quebrar o acanhamento que reinava entre os dois.
Jandira mais que depressa sentou-se e começaram uma interminável série de partidas. E entre bocejos de sono por parte dos dois jogadores, jogaram escopa, truco, vinte e um, batalha, etc. O dia já estava quase por raiar, quando Jandira sentindo que não dava mais para ficar acordada, e criando coragem, finalmente “jogou a toalha”, dizendo.
--- Nossa!.... acho que vou desmaiar de tanto sono... amanhã a gente joga mais...
--- Pois não, disse Afrânio depois de um largo bocejo e continuou. Vamos parar então.
Nenhum dos dois ousou perguntar em que cômodo da casa, iam dormir. Simplesmente Afrânio se dirigiu para o quarto que haviam preparado para o casal, e Jandira ainda muito encabulada, seguiu atrás dele. Em cima de um travesseiro, estava o pijama de cetim, listrado verticalmente nas cores azul claro e branco, todo circundado por um fio de viés escuro e botões de madrepérola. Em cima do outro, uma camisola comprida também na cor branca, toda enfeitada por rendas e fitas de cetim vermelho. O silêncio era total. Os dois cônjuges, sentaram-se na cama, um de cada lado, e procuraram trocar suas roupas, sem nem ao menos olhar, um para a nudez do outro. Mais rápido que Afrânio, Jandira puxou o lençol, e deitou-se. Afrânio então, apagando a luz no interruptor que ficava no marco da porta, e puxando o mesmo lençol deitou-se também.
Por um momento, permaneceram completamente imóveis. Em suas cabeças passavam coisas remanescentes do longo convívio, oriundas da relação entre patrão e governanta, esta era a principal razão de tamanho acanhamento. Depois então de alguns minutos, naquele silêncio profundo, onde um até ouvia a respiração do outro, Afrânio criou coragem e acariciou os cabelos de Jandira. Esta por sua vez, aproveitando o escuro do quarto, e cedendo ao fogo de seu também, vulcão interno, se aninhou mais no aconchego do peito do professor. Este, diante daquele movimento de sua companheira, perdeu o senso da razão que até agora tinha comandado suas ações, e subindo por cima do corpo dela, cavalgou docemente o dorso de sua amada.


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No dia seguinte à noite, Afrânio agora mais motivado, convidara Jandira para juntos irem passar umas horas no gigantesco Parque de Diversões Guanabara, que ainda estava armado, na Praça da Bandeira. Passeio este que prontamente ela aceitou. E se arrumando rapidamente, saíram os dois caminhando pela calçada que ficara desnivelada em relação ao nível da rua, isto é, ela ficara mais abaixo quando por ocasião do seu calçamento, e até hoje a prefeitura não providenciou sua correção.
Jandira por sua vez, estava bem radiante. E não era de graça este estado de alegria em que se encontrava, pois agora começava experimentar uma vida mais folgada, que a vida que tivera em companhia do finado Valdir. E “vendendo sorrisos”, caminhava ao lado do professor, de braços dado com ele. Ao chegarem próximo à esquina da rua Dr. Moreira, mais precisamente naqueles lotes vagos, em cujo espaço armavam-se pequenos Circos ou mesmo Parques de Diversões de pequenos portes, e na falta destes, a molecada jogava bola no local, com total desaprovação dos moradores vizinhos. Só que desta vez, estava ali armado um acampamento de ciganos, e entre várias tendas havia uma grande no centro do agrupamento, que durante o dia e no inicio da noite, funcionava sessões de cartomancia e quiromancia, e mais tarde, já pela madrugada, mudando-se as mesas começava uma doida jogatina de baralho.
Ao passarem em frente ao acampamento, Jandira viu a tabuleta em que estava escrito “QUIROMANCIA”, e não querendo refrear mais seu desejo de conhecer o mistério sobre a sua “linha da vida”, pediu a Afrânio que a levasse até a cigana, para que  realizasse então este seu desejo. Caminhando pelo acampamento, chegaram até a tenda central, onde metade dela ficava com este tipo de “estudo” e a outra, com o “estudo das cartas”, ou seja, a cartomancia.
Recebida na porta por uma cigana de meia idade e bastante obesa, com várias próteses de ouro salientes em sua boca e portando um sorriso bem largo, mandou Jandira se assentar à mesa, enquanto despregava do teto a lona da tenda, isolando desta forma, Jandira de seu marido.
Enquanto aguardava o término da sessão, Afrânio foi e voltou impacientemente até à porta do acampamento umas dez vezes, tempo este que durou a sessão destinada à Jandira. Levantando a lona da tenda, Jandira então saiu e seu rosto não refletia nenhuma alegria pelas “verdades” que a cigana havia lhe contado, e pegando novamente o braço de seu marido, tratou logo de deixar o acampamento.
Apesar da curiosidade de Afrânio, Jandira permaneceu calada até chegar mais ou menos perto da Farmácia Baêta, aí então começou a falar.
--- Nossa!... aquilo dá é medo na gente... aquela cigana pegando na minha mão com umas unhas sujas e muito mal pintadas... que nojo...
--- Mas e daí?... o que foi que ela falou que a assustou tanto assim?
--- Nossa mãe... me dá até um arrepio quando penso nela... me arrependi um tanto....
--- Mas conte então o que aconteceu, disse já impaciente Afrânio.
--- Olha quando eu entrei na tenda e ela me mandou sentar à mesa, parecia que era uma determinada pessoa... mas depois de começada a sessão, ela deu um sobressalto e começou a falar como se fosse uma outra, completamente diferente da primeira... isso me assustou bastante... e depois começou a falar coisas que não tinha nada a haver com a minha vida... coisas como... “você fará uma viagem em breve”... “você vai conhecer uma cidade nascida ao pé de uma montanha muito grande e bonita”... depois disse... “não sei porque, mas vejo uma Estrada de Ferro nas linhas da sua mão... e tem uma sigla EFSM”...
--- Como?, perguntou Afrânio. EFSM?... que será que ela quis dizer com isso?
--- Não me pergunte porque eu não sei. Respondeu Jandira ainda sobre forte tensão. E continuou. Ela falou mais, mas como parecia que estava tendo uma convulsão, e suava tanto que até escorria pelo rosto, eu nem prestei atenção direito só pensava em sair dali logo... acabou... que eu nem me despedi dela.
--- Como assim? A consulta então não acabou?
--- E eu sei lá?... só sei que quando senti que ela tinha afrouxado minha mão, eu levantei e sai mais que depressa... e aqui está o dinheiro... eu nem paguei, pois ela só ficava tremendo... Nossa!... me dá até um arrepio quando penso nela.... nunca mais volto.
--- Bobagem... eu particularmente não acredito nestas besteiras, mas a vidente normalmente faz esta encenação toda para impressionar o cliente... isto tudo faz parte do jogo. Disse Afrânio, mostrando um sorriso.

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Com uma caixa acústica composta de dez cornetas, montada em um poste de média altura, o som propagava em todas as direções, com igual intensidade, dentro das instalações. E desfilavam os boleros de Carlos Alberto e Altemar Dutra, as grandes orquestras de Billy  Vaughn e Paul Mouriat, sem falar nas internacionais de Elvis Presley, Bill Haley, Del Shannon , Jerry  Lee Lewis, e muitos outros.
Logo na entrada tinha o Trem Fantasma, este era um dos brinquedos mais concorridos, pois esta era a primeira vez que um parque o trazia a Lafaiete, bem como a pista de Carros de Batidas. Até o Carroussel, era bastante procurado, pois não havia limites de idades, para os usuários.
Por entre os aparelhos, ficava uma pista sinuosa por onde desfilavam as moças, e em sua margem ficavam os rapazes. O chão de terra batida ficava com uma terra fina e solta, por causa deste desfile. De vez em quando o alto-falante anunciava “Alguém oferece para alguém, e este alguém sabe quem” ou “ alguem oferece para a menina que está vestida com blusa verde e saia vermelha”. E a brincadeira continuava até ás onze horas, quando então começava a se esvaziar o local.
E neste ambiente de alegria e descontração, Afrânio conseguiu fazer com que Jandira se esquecesse do mal fadado encontro com a cigana. E ás dez horas, quando então saíram do Parque para retornarem para casa, não mais voltaram a tocar no assunto.



Capitulo 07



No dia seguinte Afrânio saiu pela manhã, para comprar carne no tradicional “açougue da Matilde”, que ficava próximo ao Armazém Brasil e na mesma rua onde ele residia. Mas quando passou diante do acampamento dos ciganos, viu que este estava bem movimentado. Havia carros de todos os tipos e a maioria deles considerados caros. E muitas pessoas da cidade estavam paradas na calçada, do lado de fora. Enquanto outras tantas, estavam na calçada oposta à primeira, encostadas no paredão do Depósito da Central do Brasil, e todos, em silêncio, olhavam para dentro do acampamento.
Afrânio então achando esquisito aquela movimentação, ao chegar ao local, foi logo perguntando o que estava acontecendo. A resposta veio logo.
--- Uma cigana morreu esta noite. Respondeu uma senhora que estava próxima dele.
--- Como assim? Morte natural?. Perguntou novamente.
--- Acho que foi, respondeu novamente a senhora.
--- Ainda não se sabe... dizem que ela foi encontrada morta. Disse um senhor que também estava próximo a ele.
--- Coitada... respondeu Afrânio.
E enquanto permanecia ali observando aquela cerimônia fúnebre, e ao mesmo tempo esquisita aos nossos costumes, pois havia muita fumaça de incenso, um braseiro muito grande e alguns objetos até mesmo desconhecidos à nós, dentro da tenda, ficou a pensar na triste possibilidade de se tratar da mesma cigana que tinha atendido Jandira na noite anterior. Mas não demorou muito para sua duvida se dissipar, porque logo chegou um outro senhor perto do local onde ele estava, e foi logo falando baixinho, em tom de zombaria.
--- Esta era a tal que lia as mãos... E dando uma risadinha cínica, afirmou ainda mantendo o mesmo tom. ... cansou de prever o futuro dos outros e foi incapaz de prever o próprio.
Ao ouvir isto, Afrânio saiu do local e em vez de ir ao açougue, conforme era seu plano, preferiu voltar para casa e contar à Jandira o que vira, antes mesmo que alguém o fizesse.
E entrando novamente em casa, foi até seu quarto onde Jandira estava dobrando e guardando as roupas de cama.
--- Já foi ao açougue?... puxa! que rapidez?. Perguntou ela, ao vê-lo.
--- É... não... isto é... eu voltei para te contar uma coisa... mo-morreu uma cigana ali no acampamento e está um movimento muito grande lá...
--- Não brinca!?... será que é a mesma?.... ai! meu Deus. Tentou falar Jandira, mas sua reação maior,  foi a de se sentar-se na cama e esperar pela negativa do marido.
--- Pior que sim... pelo que pude apurar, trata-se da quiromante mesmo. Disse ele.
Ah! meu Deus... eu não te falei que ela tinha ficado muito estranha... e agora... o que vamos fazer?
--- Ficar calados. Não comente com ninguém que você esteve lá ontem á noite. Porque você talvez, ou melhor talvez não... é quase certo que você não foi a única pessoa que esteve lá ontem, e portanto pode muito bem passar desapercebida. E depois... nós não temos certeza de nada, somente hipóteses... e quem poderá afirmar que isto tudo não passou de uma mera coincidência.
--- Ah!... mas não foi mesmo... você é que não viu como ela ficou tremendo naquela cadeira...  e como suava. E depois falava coisas que eu não entendia nada... até me lembro que ela disse uma coisa mais ou menos assim: “mina rio raluê” ou alguma coisa parecida com isso... deve ser alguma coisa ligada com candomblé...
--- Como é?.. repete. Disse Afrânio.
Ah! Afrânio... foi o que eu entendi... “mina rio raluê”... sei lá... ou alguma coisa parecida.
--- Bem... então você já sabe, não comente nada com ninguém... é melhor que seja assim.
A tarde chegou, e com ela aconteceu o enterro da infeliz cigana. Pela primeira vez, a população de Lafaiete pode ver um funeral feito de carros. Da cidade mesmo não havia ninguém participando dele, mas veio muitos ciganos de fora, e a sepultura foi aberta logo na entrada do cemitério.
Jandira que da janela de sua casa, assistira a saída do cortejo do acampamento, ficou muito deprimida. Aliás, neste estado de forte depressão ela tinha ficado o dia inteiro, mas agora então com esta cena que via, seu estado piorou mais, tanto que nesta noite, o próprio Afrânio optou por não ir ao colégio, para ficar fazendo companhia para ela.


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No Sábado seguinte, depois do almoço, Ronaldo apareceu na casa do professor para sua visita rotineira, e ao entrar na residência foi logo dando uma noticia auspiciosa.
--- Olá professor. Olá Da. Jandira... como vão?... tudo bem?. Indagou primeiro e depois continuou. ... logo nesta semana que eu queria encontrar com o senhor no colégio, o senhor não apareceu por lá... e eu não via a hora de mostrar-lhe esta carta.
--- Olá Ronaldo, disse o professor... é ... que eu tive de adiantar um trabalho do Banco aqui em casa  e acabei optando por não ir ao colégio. Mas na semana que vem, eu vou comparecer normalmente... senta aí. Respondeu o professor, ao mesmo tempo que lhe mostrava uma cadeira ali na copa mesmo, para o garoto se assentar.
--- Professor, eu tenho uma notícia que o senhor vai adorar sabê-la.
--- Se é assim, o que então está esperando para conta-la? E falando assim, puxou também uma cadeira e se assentou, enquanto Jandira pedindo licença ao Ronaldo, se dirigiu para o quintal da casa.
--- Bem.... o senhor está lembrado de que quando começamos a pesquisar este assunto, o senhor mesmo afirmou que um certo professor de nome Leslie Alcock, havia iniciado um trabalho de escavações, na região de Cadbury, na Inglaterra?.
--- Sim...
--- Pois é... mais ou menos um mês depois, eu escrevi uma carta para o consulado britânico,  pedindo prospectos ou mesmo qualquer tipo de literatura, oriundas das escavações do professor Leslie Alcock. E disse também na carta, que a razão maior deste meu pedido estava fundamentada no meu desejo de conhecer o paradeiro do Santo Graal.
--- E eles então responderam? Perguntou o professor.
--- Se respondeu?... Fizeram melhor... por isso que a resposta demorou tanto. Eu não comentei nada com o senhor, porque queria lhe fazer uma surpresa, mas depois, com a demora da resposta, achei que não tinham dado atenção a ela. Mas para a minha surpresa, o consulado mandou minha carta para o professor Alcock, em Bristol.
--- E aí?...
--- E aí, que agora eu estou com uma resposta assinada pelo próprio professor. E ele não se limitou em falar somente sobre a escavação de Camelot, na região de Cadbury, mas me mandou também tudo que eu queria saber sobre o Santo Cálice.
--- Me mostre então... ande... abra logo este envelope. Disse Afrânio, ansioso.
--- Calma professor... como a carta estava em inglês, eu então pedi ajuda ao professor Carlos Eduardo da cadeira de Inglês do Colégio, e ele a traduziu. E abrindo então o gordo envelope, retirou um pacote de folhetos dobrados em quatro, que separando-os foi mostrando cada folha com sua devida tradução.
Afrânio ávido de informações novas, não falou mais nada. Simplesmente pegava folha por folha, e devorava seu conteúdo com os olhos. Dentre os prospectos, tinha um mapa da Inglaterra, que mostrava o local das escavações na colina, próxima á cidade de  South Cadbury e do Castelo  de Cadbury. Mas foi na folha que estava falando sobre o Santo Graal, que o professor quebrando seu silêncio, começou a ler em voz alta, a tradução feita pelo seu colega de Colégio. E dizia
--- ... “quanto ao Santo Graal, pesquisamos tudo até o ano de 1880, quando então descobrimos que o último descendente do guerreiro romano, um inglês de nome Hunt, mudou-se para o Brasil e foi trabalhar na construção de uma Estrada de Ferro de nome “The Minas and Rio Railway”.
Se este Cálice fosse encontrado por nós em solo britânico, mesmo que o povo italiano viesse a reclama-lo posteriormente, teríamos razões suficientes para brigarmos por sua tutela. No entanto, uma vez que possivelmente ele se encontra fora de nossa jurisdição, isto é provavelmente no Brasil, achamos por bem abandonarmos sua busca, mesmo porque não teríamos como comprovar sua estada na corte do Rei Athur, uma vez que o que a história nos fala, se limita apenas a uma visão sagrada deste cálice”... puxa vida... meu Deus... e se levantando depressa, chegou até a porta da copa e gritou. ... Jandira!... ô Jandira... venha aqui por favor. E voltando para sua cadeira, disse para o Ronaldo... acho que eu já ouvi algo parecido com este nome.
--- Que nome professor?, perguntou o garoto.
--- Este, da ferrovia... “The Minas and Rio Railway”.
Neste ínterim, Jandira chega na porta da copa, e pergunta
--- Precisa de alguma coisa Afrânio?.
--- Jandira repete pra mim aquele nome que a cigana lhe falou. Disse o professor.
--- Que cigana, Afrânio... e olhando espantada para o Ronaldo e pra ele, continuou ...você esta ficando maluco?.
--- Não Jandira... no dia do enterro dela, você se lembrou de uma frase que ela teria dito... como era mesmo? Insistiu o marido.
--- Afrânio!?... você tá ficando biruta?... eu não te falei nada de cigana nenhuma. Teimou Jandira.
--- Calma Jandira... eu sei que fizemos um acordo de silêncio total, mas só para os estranhos... o Ronaldo aqui, é nosso amigo e pra ele este acordo não precisa existir. E virando para o Ronaldo, que estava com uma cara de quem não estava entendendo nada, disse. ... fica calmo companheiro, que depois eu te  conto todos os detalhes.
--- Ah! Afrânio... eu não sei direito nem o que ela falou... parece que foi ... “minerio raluêi”, ou qualquer coisa assim...
--- Está vendo... disse Afrânio olhando para a carta e ao mesmo tempo para o Ronaldo. ... isto que ela está falando pode ser muito bem “minas rio railway “ ou “The Minas and Rio Railway”... só não consigo é entender a relação “cigana /carta”, mas ... bem deixa pra lá.... mas que tem coisa aí... ah!, isso tem.
--- Professor... eu também estou bastante intrigado com uma coisa. Olha aqui. E mostrado a folha que descrevia a região de Cadbury, leu em voz alta.  “... Cadbury é por excelência a região onde se fabrica o melhor chocolate de toda a Inglaterra... “
--- Hã?, e o que tem de estranho aí?. Perguntou o mestre.
--- O senhor se lembra de que quando iniciei estes estudos com o senhor, houve uma estranha mudança de gostos em mim, e justamente para chocolates, coisa que eu não gostava?. Está lembrado?.
--- Sim. Respondeu ele.
--- Então?.... assim como o senhor está achando estranho este caso com a tal cigana, que aliás eu nem sei do que se trata, eu também estou achando que está havendo uma relação estranha  entre  “o meu repentino gosto por chocolates”, e Cadbury.
--- É... agora eu já nem sei o que dizer... disse o professor. Mas diante destes prospectos, acho que ficou mais fácil continuar com nossas pesquisas... senão vejamos... “The Minas Rio Railway”, é sem sombra de duvida uma ferrovia. E pelo próprio nome, ela abrangia os estados de Minas e o do Rio de Janeiro, isto porque eu não acredito que o nome  “Rio”, venha ser em homenagem a algum rio do Brasil. E depois... como este inglês veio para o Brasil no final do século passado, como bem afirma a carta, basta então consultar os museus históricos, para saber onde foi construída esta estrada.
--- Mas professor... não me leve a mal não, mas o senhor não acha que deve existir um numero muito grande de museus, por todo este  Brasil?
--- Lógico que existe, mas acontece que há um século atrás, as coisas aconteciam mais nos estados do Rio e de São Paulo. E para começar, vamos logo mexer com o Museu Histórico do Rio de Janeiro, se não conseguirmos nada por lá, passaremos para São Paulo, e assim por diante... o certo é que alguém deve ter esta resposta e nós vamos consegui-la, se Deus quiser. Esta semana mesmo eu vou escrever a primeira carta e veremos o que acontece. Deixe comigo.
--- Tudo bem professor... isto é pelo menos por enquanto, mas agora explique-me o tal caso com a cigana. Disse Ronaldo.
--- Muito bem... o que aconteceu foi o seguinte..
  O professor então narrou para o garoto, tudo o que tinha acontecido entre Jandira e a cigana, na noite em que a nômade havia falecido. Ronaldo ficou “com os cabelos em pé”, quando o triste relato chegou ao fim.
--- Professor... o que será que aconteceu com a tal cigana?
--- Na hora, eu achei que a atitude dela, fazia parte do jogo, isto é... cenas preparadas para impressionar a consulente. Mas agora, depois do que aconteceu com ela, associado à esta carta... não sei não... todavia prefiro ficar calado e pensar mais para chegar a uma conclusão.
--- O acampamento cigano foi embora. Disse Ronaldo.
--- Quando?...  Hoje? Indagou o professor.
--- Não sei... pelo menos quando eu passei por lá hoje à tarde, vindo pra cá, eu não já não o vi.  Completou o garoto.
--- Bem... mas isto é normal. Eles não ficam muito tempo num local não, e ainda mais depois do que aconteceu, aí é que eles não ficariam mesmo... isto era de se esperar.
--- Bem professor eu vou embora... acho que por hoje já vivi grandes emoções... disse Ronaldo se levantando para sair.
--- Espera aí Ronaldo, eu estou fazendo um cafezinho fresco para nós. Disse Jandira chegando na porta da cozinha, completando logo a seguir... afinal agora você é nosso padrinho.
--- Obrigado Da. Jandira... mas vai ficar mesmo para outra ocasião, pois já são quase quatro e meia, e eu tenho que passar no armazém do Sr Pedro Chaves para  comprar umas coisas pra minha mãe... E caminhando então para a porta despediu-se.


                                                   **************


O assunto entre os dois amigos, apesar de bastante avançado com relação à história arturiana, já estava fazendo rarear seus encontros rotineiros, porque estando no ponto em que estavam, precisavam de fatos novos para motivar o bate-papo. Deste modo então os dois se limitavam aos encontros casuais no colégio, dentro dos intervalos das aulas, e ali então um perguntava para o outro se tinha novidades. Com isso  passou o resto do mês de setembro e o mês de outubro já estava por terminar, quando o professor , passando pelo Ronaldo no corredor do colégio, interpelou-o dizendo.
--- Aparece lá em casa sábado, que chegou a resposta que estávamos esperando.
--- Chegou então?... E ela é boa? Ou melhor, é o que queríamos que fosse? Perguntou Ronaldo.
--- Olha eu estou atrasado, pois o sinal já bateu e a minha turma já está na sala, mas só vou te dizer uma coisa... a resposta que veio é bastante animadora....  e andando depressa, ainda se voltou para dizer. ...mas vá lá em casa sábado, que precisamos estudar o que vamos fazer. Ok?
--- Ok!... disse o garoto. E cada um entrou em sua sala.



Capítulo 08


E no Sábado então, às três horas da tarde Ronaldo foi até a casa do professor a fim de saber qual era a novidade que havia chegado. E batendo na porta da sala, foi logo atendido.
--- Boa tarde Da. Jandira... o professor está?. Perguntou Ronaldo com um ligeiro sorriso nos lábios.
--- Ôi Ronaldo... boa tarde para você também... vamos  entrar... o Afrânio está lá dentro. Disse Jandira, apontando para a sala de estar da casa.
Ronaldo entrou e foi direto até à sala, encontrando Afrânio cochilando no sofá, mas nem precisou acordá-lo, pois só com suas fortes batida na porta, ele já havia se despertado.
--- Olá mestre... disse Ronaldo ao entrar na sala, e continuou. ... atrapalhei o cochilo?.
--- Não, não... eu estava mesmo te aguardando... sente-se.
--- Alguma novidade?, isto é, além da resposta da carta? Perguntou Ronaldo enquanto se assentava numa poltrona.
--- Não, isto é... muitas até, mas são apenas raciocínios por enquanto. E falando assim se levantou e pegou na estante um envelope grande. De dentro deste, retirou umas folhas soltas e com elas na mão se assentou novamente, falando.
--- Veja aqui: o Museu Histórico do Rio de Janeiro respondeu o seguinte: Em l881, foi contratada uma firma inglesa de nome Waring Brothers, para construir uma ferrovia  que iniciando na cidade de Cruzeiro, no estado de são Paulo, avançasse pelo estado de Minas Gerais até à cidade de Três Corações. Esta estrada tinha o nome de The Minas and Rio Railway, e mais tarde passou a se chamar Estrada de Ferro Sul Mineira...
--- E o que o senhor está achando? Perguntou Ronaldo.
Parando então a leitura, Afrânio disse.
--- Acho que estamos com todo um quebra-cabeça nas mãos, faltando só juntarmos as peças no lugar certo. Senão vejamos:
Primeiro: estamos à procura de um Inglês chamado Hunt, segundo a carta de Leslie Alcock que você recebeu. E esta firma é composta por ingleses.
Segundo: A finada cigana havia dito para Jandira que estava vendo uma ferrovia com a sigla EFSM, e esta sigla está bem aqui Estrada de Ferro Sul Mineira.
--- Esta eu não sabia... o senhor está dizendo que a cigana havia dito esta sigla para Da. Jandira? Perguntou o garoto.
--- Sim... quando eu te contei o caso dela, talvez eu tenha me esquecido deste detalhe. Respondeu o professor, e continuou seu raciocínio. ... E agora vem a parte mais forte de tudo isso. Parte esta que eu não quero comentar nada com a Jandira, porque eu sei que ela não tem preparo nenhum, para falar sobre isso. Mas, por outro lado, eu tenho que falar com alguém, e este alguém tem que ser você... o quê que você acha?... está preparado para ouvir?... quer ouvir?, insistiu o mestre.
--- cla-claro professor... po-pode falar... Ronaldo respondeu desta forma, mais por ser homem do que mesmo por sentir coragem para ouvir o que o professor tinha para falar.
--- Bem... na verdade o que eu vou falar não passa de um raciocínio meu, mas juntando este quebra-cabeça, acho que tem alguém muito interessado nesta história, e está manipulando todos estes acontecimentos.
--- È professor?... o senhor acha mesmo?... e porquê esta desconfiança?
--- Bem, pegou a palavra novamente o professor... Você se lembra dos seus sonhos?
--- Lembro...
--- Então? Lembra que você começou instantaneamente a gostar de chocolates ?
--- Sim, respondeu o garoto, visivelmente assustado.
--- Lembra que na carta que você recebeu, falava que Cadbury era a região do chocolate?
--- Estou lembrado.
--- Lembra que no seu sonho: você, eu e a Jandira, íamos fazer uma viagem a uma cidade que ficava aos pés de uma montanha, e que todo mundo lá falava português?
--- Le-lembro....
--- Lembra que você mesmo foi quem me alertou, que a Jandira estava no sonho sendo que você nem sequer imaginava que íamos nos casar?
--- Lembro, mas ainda não enxerguei a relação, não.
--- Muito simples, parece que alguma coisa estava forçando a gente encontrar a pista na Inglaterra, através do chocolate... Agora, para continuarmos a busca, já precisamos viajar até à cidade de Cruzeiro... e eu não vou viajar sem ela. Além do mais, segundo a minha pesquisa, esta cidade fica situada aos pés da serra da Mantiqueira, certo?
--- Certo?
--- Pois então, desta forma fica virtual todo aquele sonho que você teve.
--- É... acho que o senhor tem razão?
--- Mas a coisa não para aí não, tem também a parte da cigana, que visivelmente se transformou em outra pessoa, e deu várias pistas para Jandira...
--- È mesmo?!... agora está dando até para arrepiar, professor.
--- Então?... é isso que ainda não entendi direito, mas parece que tem alguém... ou alguma coisa forçando esta aventura... sei lá... mas que tem “coincidências” demais acontecendo aqui... ah! isso tem.
--- E o que o senhor está pensando em fazer agora?
--- Uma viajem... precisamos continuar nossa pesquisa... ou você está desanimando?
--- Claro que não... mas uma viajem?... agora?...
--- Olha as aulas estão por terminar... e logo que terminarem, acho que poderemos ir até Cruzeiro, o quê nos impede de fazer isso?
--- Dinheiro, professor... eu não tenho um níquel sequer...
--- Quanto a isso você não precisa nem se preocupar. Basta apenas que você consiga a permissão dos seus pais, pois as despesas vão correr por minha conta... você não vai gastar nem um tostão.
--- É...eu não vejo problemas quanto à permissão deles, não... mas, eu só não sei o que vou alegar pra eles, sem que eles nos chamem de loucos. Disse o garoto sorrindo.
--- Ah!... você diz para eles que é turismo... é... turismo...  isto explica tudo...
--- E quando partimos então?
--- Acho que uma semana depois que as aulas terminarem está muito bom. Disse o professor.
--- Tudo bem... deixa comigo... “ cavalo dado, não se olha os dentes”, e depois... se isto tudo não der em nada, pelo menos fica realmente o turismo que realmente vamos fazer. Dizendo isso Ronaldo se levantou para ir embora, e já na porta da casa disse, à guisa de despedida. ... A gente então se fala no Colégio, o.k.?... até amanhã professor... e gritando outro “até amanhã” para Da. Jandira, que estava na parte interna da casa, saiu.


                                                    **********

Tudo correu como mais ou menos tinham combinado. A principio, Ronaldo teve um pouco de dificuldade em convencer seus pais, a lhe dar  permissão para empreender uma viagem em companhia de pessoas estranhas à todo o  restante de sua família. Contudo, através da amizade que havia entre o espanhol dono do bar, o "Seu Dígno”, que era como todos o chamavam, e seu irmão Wilson, este então conseguiu, um importante depoimento do espanhol, quanto à seriedade do Professor Afrânio, e a sincera amizade que existia entre o garoto e seu professor.
O Professor por sua vez, conseguiu viabilizar o início de suas férias escolares com as férias bancárias, a que já tinha direito gozar. Como Da. Jandira, agora esposa de Afrânio, estava para o que desse e viesse, gostou muito da ideia de fazer, talvez a primeira longa viajem de sua vida.
Assim sendo, no dia quinze de novembro de 1964, embarcaram os três às 22 horas, no ônibus da Viação Cometa, que fazia ponto em frente ao Bar Globo, situado na Rua Marechal Floriano Peixoto, perto do cine Avenida.
O Plano de viagem traçado pelo professor era muito simples, consistia em viajar rumo a São Paulo e desembarcar na cidade de Aparecida do Norte. Uma vez lá, pegariam uma ou várias conduções se necessário fosse, para se dirigir até a cidade de Cruzeiro, que ficava próxima à divisa com Minas Gerais.
Afrânio foi quem mais tempo, conseguiu manter-se acordado durante esta viagem, que acabou às 8 horas da manhã do dia seguinte. Jandira e Ronaldo, estes não dormiram mais porque a viagem tinha acabado. Na rodoviária da cidade de Aparecida, conseguiram um ônibus direto para Cruzeiro, e lá chegaram por volta de meio dia. Mas tamanho era o cansaço, que todos preferiram ir para um hotel, para tomar um banho e descansar o corpo numa cama.
O fato é que somente à tarde, os três conseguiram reunir forças para sair e conhecer um pouco da cidade. Hospedados que estavam no hotel Brasil, logo que ganharam a calçada, olhando para a esquerda, Afrânio logo vislumbrou uma construção antiga, que parecia atravessada naquela rua, voltando até a recepção, perguntou para o hoteleiro, que construção seria aquela?
--- Ah!... ali é que deu inicio à esta cidade... trata-se da fazenda Boa Vista do major Novaes... tudo aqui em volta... inclusive a estrada de ferro... tudo... tudo, teve inicio ali.
--- A Estrada de ferro que está aqui do lado do hotel, também?... perguntou Afrânio.
--- Sim... disse o hoteleiro, e continuou... só que no inicio ela não tinha este nome não... ela se chamava “The Minas and Rio Railway, e iniciou-se justamente ali na frente da fazenda do major...
Afrânio, vendo que o hoteleiro, um senhor já de idade avançada, gostava de tagarelar, continuou então “puxando a língua dele”.
--- Agora que o senhor falou, eu começo a me lembrar de que já li alguma coisa sobre este inicio... me parece que vieram uns ingleses para a cidade, só para construí-la, não foi?
--- Exatamente... e eles moravam ali mais no alto... lá até ficou com o nome de Morro dos ingleses... justamente por causa deles.
--- Eu vou então ali conhecer esta fazenda mais de perto... até logo e obrigado pelas informações. Despediu então o professor e foi com Jandira e Ronaldo, até as proximidades da fazenda.
  Andando ainda na calçada da Companhia Vigor, com olhar fixo em seu alvo que era a fazenda, o professor ia falando.
--- Esta cidade não tem mais que 60 ou no máximo 80 anos, pelo que eu já pesquisei... mas esta fazenda tem pelo menos o dobro do tempo dela... e este tal de major Novaes, que o hoteleiro se referiu, foi quem influenciou D. Pedro II a iniciar esta tal Estrada de nome inglês por aqui... é... nada é totalmente de graça... para este major, que na época era produtor de café, ficava muito mais fácil embarcar a sua produção, se uma estação ferroviária se estabelecesse por aqui.
--- E conseguiu... disse Jandira.
--- É... como diz os ditados “o rio só corre para o mar”... e “só ganha dinheiro, quem tem dinheiro”...completou Ronaldo.
  Chegando os três em frente à fazenda, ficaram admirando-a.
--- O portão está fechado. Disse Afrânio.
---  Professor olha lá dentro a grossura descomunal que tem aquela árvore.... disse Ronaldo, deixando de olha-la, através da grade ripada, do portão.
--- Nossa Mãe!! Disse Jandira se adiantando ao professor e olhando onde Ronaldo mandara olhar.
--- É... deve ser uma árvore secular... a própria construção tem este ar de “secular”, de antiga... olha os traços dela... disse ele.
--- Professor... o meu sonho... olha a montanha... como é linda....
--- Realmente... ela é simplesmente fantástica... faz um cenário digno dos cenários da Noruega... E olhando então o relógio, disse. ... vamos dar uma volta pelo centro, enquanto está claro ainda.
  E assim fizeram. E lá pelas sete horas da noite voltaram ao hotel para jantar e se recolher mais cedo, por causa ainda da extenuante viajem.
  Ronaldo ficara em um quarto, que por sua vez, ficava defronte ao quarto do casal amigo. Afrânio, ao adentrar seu quarto, encontrou em cima de sua cama uma revista antiga, e um bilhete do hoteleiro que dizia.
 
“Prezado hóspede:
 
Tendo em vista o seu interesse nas coisas arcaicas de nossa cidade, deixo aqui este exemplar raro, para sua apreciação. Não existe pressa para devolvê-lo, podendo fazê-lo até o dia de sua partida.
                        
                                                    Brandão(recepção).

Depois do banho e do jantar, os três personagens se encontraram no quarto do professor, para olhar a tal revista.
Acercando então da cama de casal, pois era a única coisa grande dentro do quarto que poderia servir para permitir o acesso à revista, pelos três ao mesmo tempo. Afrânio começando então a folheá-la, tão logo viu a foto da fazenda começou seu comentário.
--- Olhe aqui... a fazenda onde fomos à tarde... esta foto foi tirada recentemente... e parece que ela foi batida aqui desta rua mesmo onde está o hotel... veja o portão... os lances de muro pré-fabricados... o arvoredo que tem na frente, onde fica aquela arvore secular... coisa rara aquela árvore... talvez esta população não dê tanto valor à ela quanto nós, turistas... e...  aqui nesta página a foto de quando Dom Pedro inaugurou o túnel da serra... veja nesta foto está... acho eu...  toda a família real...
--- olhe aqui professor... este trecho aqui fala dos ingleses... a Companhia em que eles trabalhavam chamava-se “Waring Brothers”... dizia Ronaldo, e mais estupefato ficava à medida em que ia lendo o trecho e encontrando pistas. ... aqui professor: Engenheiro Hunt foi quem traçou o leito da ferrovia... é este o nosso homem, conforme nos mostrou a carta da Inglaterra...
--- É... agora... precisamos encontrar a casa onde ele morava... tomara que ela ainda exista.
--- Aqui professor... a resposta da sua pergunta esta aqui, ó... “O local onde os engenheiros da Waring Brothers construíram suas casas, ficou com o nome de Morro dos ingleses”... acho que se perguntarmos onde fica este morro, a coisa fica fácil.... disse Ronaldo.
  E ali ficaram horas e horas fazendo seus planos para o dia seguinte. Quando o sono chegou, chegou para os três ao mesmo tempo, de forma que Ronaldo pedindo licença foi para seu quarto, enquanto Jandira e Afrânio, começaram seus preparativos para dormir.
  Acordaram cedo, isto é, Jandira acordou cedo, porque Afrânio Já estava acordado quando ela realmente acordou.
--- Dormiu bem?... pelo visto, acho que não... pois já está acordado? Perguntou Jandira, ainda deitada, a seu esposo, que sentado numa cadeira defronte à janela, contemplava a serra.
--- Hâ?!.. dormi... dormi, sim... apenas estou aqui contemplando esta vista maravilhosa.
  Na verdade Afrânio, não dormiu a noite toda não. Um pesadelo o acordou de madrugada e não mais conseguiu conciliar o sono. Agora mesmo, sua cabeça estava um pandemônio, e esperava com ansiedade a hora de conversar com Ronaldo e contar a ele o tal sonho. No entanto para a Jandira, ele estava preferindo esconder o acontecido.
  Ali ficaram então conversando até mais ou menos quase oito horas, hora esta que um leve toque na porta, chamou-lhes a atenção.
--- Deve ser o Ronaldo... Falou Afrânio , enquanto se dirigia para abrir a porta.
--- Bom dia professor... Dona Jandira já se levantou?, perguntou o garoto.
--- Já... já... entre, estávamos mesmo te esperando para tomarmos café juntos.  Jandira já está quase pronta... não vamos demorar, não.
  Logo que a esposa se aprontou, desceram os três para o refeitório e do refeitório, após o café, saíram novamente para a rua.
  Andando pela rua major Novaes, pararam em frente a loja Ao Gonçalves, pois Jandira manifestou o desejo de nela entrar. Afrânio que queria conversar à sós com Ronaldo, não objetou, inclusive até a incentivou a fazê-lo, dizendo que ficariam esperando do lado de fora.
  Logo que ela entrou, o professor baixando sua voz, disse para o garoto.
--- Eu já não estava agüentando mais esperar esta oportunidade para conversarmos...
--- O que foi professor? Aconteceu algo?
--- Foi o meu sonho desta noite... eu já te falei que está acontecendo coisas estranhas, não te falei? Pois é, pois aconteceu mais uma... sabe aquela foto da fazenda que está na revista?
--- Sim.
--- Pois então... sonhei com ela... e no meu sonho... eu fui até aquele muro... e no terceiro lance... eu tirei a placa intermediária e ela se transformou num portal de tele-transportamento...
--- Tele o quê, professor? Perguntou Ronaldo.
--- Tele-transportamento... uma espécie de portal do tempo, isto é, uma passagem para outra dimensão...
--- Ah! Professor... isto está ficando muito sinistro... devo confessar que estou começando a ficar com medo...
--- Pior que eu também... mas se eu não for em frente poderei ficar frustrado por toda vida?
--- É... mas eu estou preferindo é ficar vivo. Respondeu Ronaldo.
--- Bom, mas não é necessário que você me acompanhe não... pensando bem, se você ficar com a Jandira eu já ficarei mais tranqüilo... e depois... e depois eu não tenho mesmo certeza, do que vou encontrar depois que passar naquele vão de muro.
--- Então o senhor vai passar esse portal? Perguntou o rapaz.
--- Olha Ronaldo... eu fiquei acordado desde a hora que acordei com este pesadelo... e fiz  vários raciocínios, senão vejamos... Primeiro, tudo que sonhamos, mesmo individualmente, veio a se concretizar... segundo, se formos agora na casa onde morou este inglês, provavelmente não acharemos nada, pois muitos anos já se passaram, desde a sua vinda e sua saída daqui... Terceiro, mas se aquele buraco for mesmo um “túnel de tempo”, e me levar à época em que ele morou aqui, é certo que terei mais chance de encontrar alguma pista...
--- Mas professor interferiu Ronaldo interrompendo a escalada do raciocínio dele, e continuou. ... Como o senhor tem certeza de que este portal o levará até esta idade?... e se este sonho for como os demais sonhos que a gente tem na vida e não dão em nada?
--- Existe sim esta possibilidade... mas como está existindo muita mistificação nesta nossa história, eu prefiro acreditar na veracidade deste sonho... porque assim, se eu estiver certo, vou satisfazer de vez o desejo de pelo menos tocar este objeto sagrado, que um dia passou pelas mãos de nosso Rei Maior – Jesus Cristo.
--- Bem professor... eu vim aqui para isto também e não vai ser agora que vou deixar o senhor sozinho nesta empreitada, não... quando é que partiremos para esta nova viagem?
--- Bem... para que possamos retirar aquela placa de muro sem causar suspeita nenhuma, penso que só de madrugada...
--- Tudo bem... as três horas então? O que o senhor acha?
--- Tudo bem... mas não vamos levar a Jandira não... à noite você vem ao meu quarto e me dê uma ajuda para convence-la a ficar no hotel e nos esperar... agora vamos parar com o assunto que ela já está chegando.


  À noite, reuniram-se os três personagens dentro do quarto do professor, e a conversa com Jandira então teve inicio. O professor começou o diálogo.
--- Olha Jandira... Nós vamos fazer uma investigação no terreno da fazenda esta noite.
--- Agora?...
--- Não de madrugada... mais precisamente às três horas em ponto...
--- Nós quem? Porque se está me incluindo nesta aventura, pode tirar seu cavalinho da chuva, porque ele vai se molhar... daqui eu não dou mais nem um passo nesta direção.... se vocês estão loucos e ainda não desconfiaram... o azar é de vocês...
--- É meu bem.... nós estávamos contando com você, não é Ronaldo?.
--- É... É... estávamos. Ronaldo respondeu assim porque o professor piscou o olho para ele.
--- Pois já disse uma vez, e vou repetir. Daqui eu não saio.
--- Tudo bem... disse o professor. E continuou... Bem, então escute bem... Nós, eu e o Ronaldo vamos lá no terreno da fazenda fazer uma investigação... pode ser que não encontremos nada, neste caso, logo, logo estaremos de volta ao hotel... porém, pode também acontecer de encontrarmos alguma coisa que valha a pena continuar a busca... se isso acontecer, pode ser que demoremos um, dois ou até uns três dias a voltar...
--- Eu devia era ter internado vocês. Disse ela.
--- Vamos querida.... seja complacente e faça o que estamos pedindo... durante este tempo que possamos estar fora, você saia normalmente à rua e compre alguns vestidos para você... mas se alguém perguntar por nós, falo isto por causa do hoteleiro, você diz que fomos à Aparecida do Norte à negócios. O.k.?
--- Olha aqui “seu Afrânio” se der três dias e vocês não voltarem, eu vou embora para Lafaiete e espero vocês por lá... porque eu não vou ficar sozinha numa cidade estranha por muito tempo não... entendeu? Porque vocês dois podem estar doidos, mas eu por enquanto não.
--- Tudo bem... Faça assim então... Se passar de três dias você faz isto... Agora Ronaldo, vamos nos preparar.
--- Tudo bem... devo levar alguma coisa em especial? Perguntou.
--- Não... acho que não... se for como estou pensando, não devemos nem levar documentos...
--- E se precisarmos deles como faremos? Indagou novamente o garoto.
--- Não se incomode com isso... é melhor deixarmos eles aqui... vá por mim... disse o professor, finalizando a conversa.




    
  
Capítulo 09



Às duas e meia da madrugada, o relógio despertou e o professor abafou de pronto seu ruído, para não acordar nenhum hóspede. Pé ante pé, foi até ao quarto de Ronaldo e abrindo-o com a chave que tinha ficado em seu poder, despertou-o, sacudindo-o levemente.
--- Vamos companheiro... está na hora. Vista só um agasalho e não leve nada com você. Depois me espere no corredor porque eu vou trocar de roupa... veja se não faz barulho nenhum, para não acordar os hospedes... Dizendo isso saiu rumo ao seu quarto.
Quinze para as três, começaram a sair do hotel. Ninguém na recepção. Destrancaram a porta e saíram à rua. Ronaldo tremia como uma vara verde.
--- Que é isso... você está com medo? Perguntou o professor.
--- E-Eu?... na-não. Eu estou é co-com f-frio. Respondeu o “corajoso” garoto.
--- Então vamos. Disse o professor.
  E quando começaram a caminhar pela rua Dois, em direção à fazenda, Ronaldo notou que o professor estava usando relógio. E então falou.
--- O senhor mesmo disse para não levar nada, e no entanto está levando este relógio de bolso.
--- Deixa estar... este relógio é muito antigo... e precisamos ter um parâmetro para passar o portal. Respondeu Afrânio.
--- Como assim?
--- Eu prefiro passar pelo buraco do muro, precisamente às três horas.
--- Posso saber o porquê desta precisão?
--- Palpite... Simplesmente palpite.
--- Então vamos mais depressa que está faltando cinco minutos para as três. Disse Ronaldo.
  Chegaram ao muro. Na rua não havia uma viva alma. Para a surpresa deles a placa estava solta.
--- Está vendo... todas as demais placas estão fixas.... somente esta está solta. Disse o professor.
--- É... eu estou achando isto muito esquisito?.
--- Rápido...me ajude a tira-la e baixa-la ao chão, porque já estamos quase em cima da hora.
  E pegando de dois, baixaram aplaca. Olharam dentro e viram a escuridão do terreno apenas.
--- Bem professor... podemos voltar... ai não existe nenhum portal, não. Disse Ronaldo querendo voltar logo.
--- Não espere... vamos esperar dar três horas em “cima da pinta” e pulamos os dois. Se realmente não houver nada, voltaremos para o hotel.
--- Está brincando professor?... O senhor ainda não se convenceu que aqui não existe porcaria de túnel nenhum? Respondeu Ronaldo.
--- Não... para te falar a verdade mesmo, eu ainda não desconfiei de nada... e já que estou aqui vou até ao final... você vem ou não vem comigo?.
--- Já que in-insiste... pre-paremos  então.
--- O.k.? quando der três horas... pulamos ao mesmo tempo... eu vou contar até três... um... dois... e...  três, JÀ!.
 
 
                                                ************


  Afrânio ao acordar olhou para Ronaldo. Este, com o corpo totalmente nu tremia como se estivesse tendo um ataque epiléptico. Olhou para si e se viu igualmente despido como o garoto. Apenas o relógio estava caído ao seu lado. Levantou os olhos e viu a fazenda às escuras. Mas havia barulho de roncos próprios de pessoas dormindo. Acercou-se do garoto que acabava de acordar naquele momento. E colocando o dedo indicador verticalmente nos lábios fez.
--- pisss... pissss, fale baixo que ainda não sei o que aconteceu direito.
--- Estamos sem roupas, professor. Que será que aconteceu?
--- Precisamos sair daqui e rápido... disse Afrânio.
--- E como vamos fazer isso... seremos presos imediatamente por estarmos nus.
--- Calma... estou vendo um varal de roupas ali... vamos até ele e peguemos alguma coisa que nos sirva... vamos... depressa.
  E assim fizeram duas calças e duas camisas sumiram daquele arame que era suportado no alto por um bambu. Feito isso, pularam o muro e saíram para a rua. Já na rua, o garoto voltou a perguntar.
--- Onde estamos?
--- No mesmo lugar que estávamos... veja isto... esta estrada aqui é aquela rua onde fica o hotel. Respondeu o professor.
--- Que horas são? Perguntou o garoto.
--- Três e vinte ... mas, acho que ficamos uns 10 minutos desacordado. Respondeu o mestre.
--- Porque acordamos nus?
--- Porque como eu temia... tudo aquilo que trouxéssemos conosco iria desaparecer por causa do tempo de fabricação delas... e o relógio, bem... eu suspeitava ser bem antigo, agora tenho certeza que ele foi construído antes do tempo em que estamos.
--- Mas e nós, professor... como sobrevivemos se também somos de outra época?
--- Não sei.... mas levamos uns dez minutos mais ou menos para fixar nossa alma outra vez.
--- Nossa alma? Que quer dizer com isso?
--- Nós também não somos desta época... portanto Deus deve ter tido um probleminha conosco para nos estabilizar depois do transporte... porque sem alma não podíamos ficar... e levando em consideração as coincidências que estavam acontecendo, eu pensei... se ali for um portal, na certa Ele então terá uma solução para nós... e parece que teve... pelo menos até agora.
--- Professor... se o senhor sabia disso... e veio assim mesmo... acho agora que Dona Jandira tinha razão em afirmar que o senhor é biruta.
--- Que nada... vamos andando porque as fazendas acordam cedo e se nos pegam com estas roupas... aí sim, teremos mais um complicador...
--- Calma professor... vamos com calma, porque andar descalço eu não tenho nenhum costume... puxa vida! aquele tênis novinho que eu tinha... até ele, desapareceu...
--- Já pensou se num tempo destes... você aparece aqui calçado com aquele tênis... o que o povo desta cidade iria pensar...
--- Sei lá?... e o quê me importa isso?... pelo menos eu não estava andando agora descalço nesta terra vermelha misturada com cascalho... ai!.. esta, parece até que me cortou o pé.
--- Calma... vamos andando. Disse o professor.
--- As ruas são disformes, isto é, são mais caminhos do que  mesmo ruas... não dá nem para a gente se localizar. Disse Ronaldo.
--- Calma Ronaldo... basta a gente ter calma e paciência que tudo se arranja... nesta escuridão fica difícil mesmo... principalmente para nós que não somos daqui... e depois veja não existe luz elétrica... parece que os poucos postes existentes são para iluminação à  querosene... mas quando amanhecer as coisas ficarão mais fácil.... mas aqui neste descampado onde estamos, fica o hotel onde a Jandira está dormindo a esta hora... incrível não é?...
--- Aqui professor... neste descampado? Perguntou espantado Ronaldo.
--- Sim... esta estrada aqui, mais tarde se transformou naquela rua do hotel, veja lá no fundo a fazenda...
--- Mas se aqui está o hotel... a estação também tinha que estar aqui, pois um é perto do outro.
--- Nisto você tem toda razão... mas porém não significa propriamente que a estação foi construída em primeiro lugar.... o mais razoável até, é que fosse construída mais tarde, depois do assentamento dos trilhos... e deve ser isso mesmo  que aconteceu... vamos.
--- Professor em que ano nós estamos.
--- Vamos seguir a construção da linha férrea, que eu te digo mais menos.
  E assim fizeram... Voltaram em direção à fazenda, só que desta vez andando em cima dos dormentes de madeira que estavam assentados em meio ao as pedras e britas. Andaram mais ou menos um quilometro, daí em diante, sumiu as pedras e ficou os dormentes com os trilhos fixados. Mais à frente, terminaram os trilhos e ficou um pequeno trecho com dormentes no leito.
--- Bom... devemos ter andado mais ou menos uns dois quilômetros e pouco... como naquela revista fala que os trilhos começaram a serem assentados no final de abril de 1881... esta pequena quilometragem, nos dá a certeza de que estamos igualmente neste ano, e o mês provavelmente maio ou no máximo, principio de junho.
--- Nossa!?!... junho de 1881... se a gente contar ninguém vai acreditar...
--- É... lembra que lá na fazenda, nós ouvimos uns roncos de pessoas dormindo... pois é... aqueles roncos devem ter vindo da senzala... naquela fazenda tem escravos... coitados... e eles só serão libertados daqui há sete anos, ainda...
--- É mesmo professor... nós estamos antes da promulgação da Lei Áurea... Disse o garoto.
--- Vamos então sair daqui... o dia já está clareando e os trabalhadores não vão demorar a aparecer.
  Dali então os dois saíram e procuraram encontrar o centro da vila, coisa que não foi fácil, porque as casas eram muito espaçadas uma da outra e muitos terrenos baldios se achavam entre elas. Mas de qualquer forma, à eles só interessavam descobrir onde morava o Eng. Hunt.
  Por volta de meio dia, a fome apertou. Sem dinheiro algum nos bolsos, mesmo porque se tivessem trazido, de nada lhes valeria, pois estavam na época dos réis. Para superar esta dificuldade, tiveram que pedir de casa em casa alguma sobra de comida.
  O famoso morro dos ingleses, não foi difícil localizar, pois de qualquer ponto da cidade dava para vê-lo. E em meio as construções nele existentes, tinha uma que destacava mais que as outras, era justamente a casa do Diretor da obra, o Eng. Hunt – conforme mostrava a foto da revista. E num passeio como se nada queriam, passaram duas vezes em frente a tal casa. Quase defronte a ela, tinha uma escada comprida feita no barranco, com a utilização somente de tábuas e escoras roliças para conter a terra, formando os degraus. E no ultimo degrau, em baixo nesta mesma escada, sentaram-se os dois viajantes do tempo e começaram a formular os planos.
--- Nós temos até às três horas da madrugada para achar o Santo Graal e voltar para nossa época... senão, teremos que esperar até às três horas da madrugada do dia seguinte... disse o professor.
--- Porque tem que ser às três horas? Perguntou Ronaldo.
--- Eu não quero fazer nada diferente do que fizemos para entrar nesta dimensão... portanto se entramos às três da madrugada, acho bom continuarmos com este horário para voltarmos...  de repente se mudamos algum detalhe, poderemos nos perder no tempo... disse o professor.
--- E o que pretende fazer agora?
--- Uma coisa que você não sabe, é que em vilarejos como este, o dia começa cedo demais e a população dorme mais cedo ainda.. Portanto onze horas da noite aqui, é madrugada para eles.
--- Então o Sr. pretende entrar na casa do Hunt às onze horas? É isso?
--- Não... mais tarde um pouco, talvez à meia noite mais ou menos... já vimos que na residência não existe cães... Portanto, quando escurecer vamos dar uma olhada em volta dela e tentar descobrir como iremos fazer para obter o êxito desejado.
--- E se acaso encontrarmos lá o Santo Graal, professor... O senhor. terá mesmo coragem de roubá-lo? Indagou o rapaz.
--- Deus que me perdoe, Ronaldo... mas eu não vim até aqui para apenas toca-lo... portanto, se der para leva-lo, esteja certo que o farei.
--- Mas isto não é um roubo?
--- Não... propriamente não... porque ele não pertence a esta família... ele foi roubado, não se lembra da história.
--- Sim... e “quem rouba ladrão, tem cem anos de perdão”, não é mesmo? Disse o rapaz e sorriu.
--- Vamos então circular por aí, para não levantar suspeitas ficando em um lugar só. Quando for lá pelas oito horas da noite, voltaremos para espionar a casa direito.
  Assim então fizeram , e às oito horas da noite voltaram ao morro dos ingleses. Estava escuro, pois não havia iluminação nas ruas, portanto a tarefa ficava mais fácil para eles, tendo a escuridão como aliado, apesar de nesta noite a lua se mostrar cheia e bem redonda, no céu.
  Passaram em frente da casa e mais à frente, entraram no mato para espiona-la pelo outro lado. Ela estava acesa, pois em cada quarto havia um possante lampião. Uma mulher arrumava as camas para dormir, estendo colchas por cima dos colchões. Na sala, um homem com traços de europeu, fumando um grosso charuto, examinava uns papeis por cima de uma mesa comprida. Crianças, às vezes passavam de frente a alguma janela, não foi possível detectar o numero certo delas
  Se movendo devagar pelo matagal, acompanhado de perto pelo garoto, Afrânio notou um quarto fora da casa, o único por sinal que estava ás escuras. E aproveitando a circulação dos lampiões dentro da casa, disse para o Ronaldo, quando um facho de luz bateu na janela deste quarto.
--- Estamos com sorte...o quarto que nós queremos é exatamente este que fica fora do corpo da casa.
--- Como pode ter tanta certeza assim?
--- Bom... primeiro, porque ele parece ser um quarto de despejo... e segundo... Você se lembra que um dia eu te contei que havia sonhado que estava abrindo um malão velho, todo empoeirado, e de repente houve um estrondo, e eu acordei?... lembra?
--- Lembro...
--- Você se lembra também... que eu falei que a janela do quarto era em arco com tijolos sem reboco?...  lembra?
--- Estou lembrado. Respondeu Ronaldo.
--- Então... nem no corpo da casa, existe uma janela igual a janela daquele quarto... portanto, o nosso objeto só pode estar dentro dele.
--- Professor ... eu estou vendo o senhor otimista demais...
--- E não era para eu estar?... você ainda não notou que todos os nossos sonhos, que tivemos mesmo individualmente, deram certo até agora?
--- Bem isto é verdade.
--- Já que localizamos o alvo, que faremos agora?
--- Nada... vamos nos assentar aqui mesmo e esperar a hora de atacar.
--- Tudo bem... mas eu estou com tanta fome, que acho que comeria um bezerro sozinho.
--- Eu também... mas se tudo der certo voltaremos hoje ainda para o hotel e faremos aquela festa.
--- Professor... não me leve à mal não, mas e para abrir aquela porta como pretende fazer?
--- Não sei ainda...mas encontraremos um jeito... e depois, fica difícil prever este tipo de coisa, porque não sabemos qual o tipo de fecho que eles usam...
--- Pois então pode esperar um “baita” de um cadeado.
--- Não... nesta época ainda não existiam os cadeados... aliás, nem ladrões... não ficarei admirado se nem fecho a porta tiver.
--- É... como eu disse, o senhor está muito otimista.
  Onze e meia. A casa estava às escuras há mais de duas horas. Afrânio então esfregou uma mão na outra e disse.
--- Pronto Ronaldo, a festa vai começar. E só temos a luz da lua para nos ajudar... mas também,  mesmo que tivéssemos trazido uma lanterna, ela também teria desaparecido. 
  Dizendo isso começou a caminhar devagarinho e semi-curvado na direção do tal quarto escolhido por eles. Ronaldo, como um macaco, procurava copiar seu mestre em todos seus movimentos. Atravessaram o quintal da casa e circundaram o quarto, tentando olhar em seu interior, por alguma fresta que por ventura tivesse nas paredes. Nada feito, a única janela que o quarto possuía, era aquela cuja memória do professor havia avivado, momentos antes, e estava tal como a porta, fechada. Parando na porta, o professor olhou ao redor para procurar algum pedaço de madeira para servir de alavanca e com ela, forçar a sua abertura. Neste momento Ronaldo observando mais em cima, notou um trinco externo feito em arame grosso. Soltando-o, a porta se abriu rapidamente emitindo aquele rangido e bateu na parede fazendo um barulho surdo. O professor estremeceu e fez.
--- pisss!... cuidado!... deste jeito você vai acabar acordando a cidade.
--- Lá dentro está uma escuridão danada... disse Ronaldo, com voz abafada.
--- Vamos entrar... mas cuidado... um barulho mais, e pomos tudo a perder.



 
  


Capítulo 10


Começaram a entrar no quarto. Sorte deles que a luz da lua passava pela vidraça da janela e tornava o resto do cômodo um pouco mais visível.
--- Graças à Deus que temos a luz da lua, senão estávamos perdidos. Disse o professor, e continuou ... vamos escolher com cuidado onde mexer, para evitar fazer barulho desnecessário...
--- Ali professor... falou Ronaldo, mostrando uma grande arca antiga.
--- É ela... a mesma do meu sonho... tenho certeza. Falou o professor.
--- Então vamos abri-la. Falou Ronaldo.
--- Calma deixe comigo... eu sou mais cuidadoso,
  E falando assim, com muito cuidado abriu o fecho e levantou a tampa. E como toda coisa velha, rangeu também as dobradiças. Encostando a tampa na parede, começou ele a apalpar tudo que havia dentro. A arca estava cheia de objetos. Para atingir os que estavam mais ao fundo, teve que tirar alguns de cima e coloca-los no chão, ao lado. E continuando a apalpar, instantaneamente parou ao tocar uma espécie de taça. Aguçando o tato, contornou o objeto devagarinho, e retirando-o de dentro do baú, disse.
--- Achei... deve ser ela.
Nesta hora houve um estrondo e uma luz dourada inundou o ambiente, ao som de uma sonora gargalhada.
--- Há! há! há... há! há! Livre!... Finalmente livre!
  Quase que num relâmpago, Ronaldo quis chegar à porta para fugir do local, mas esta se fechou sozinha à sua frente, detendo-os. O professor não conseguia falar nada, e muito menos o Ronaldo. Este, por sinal, tremia como uma vara verde. Imediatamente apareceu um vulto no fundo do quarto. Era um soldado romano armado com uma espada na cintura e portando seu escudo de guerra. E com aquela voz de trovão, disse novamente.
--- Levem ele... o Santo Graal  agora é de vocês... Levem-no....
  Afrânio, nesta hora criou coragem, e perguntou.
--- Que-quem é vo-você?
--- Eu sou Demétrius... há quase dois mil anos atrás, para minha infelicidade, roubei este cálice que está em sua mão... Mas agora... vocês acabam de me livrar do castigo, a que fiquei este tempo confinado....
  Nesta hora a luz dourada cedeu lugar à uma outra luz, agora meio azulada. Uma figura angelical apareceu com vestes brancas e azuis. Demétrius calando-se, ajoelhou, mantendo a cabeça baixa. Afrânio e Ronaldo estavam apavoradíssimos, e não sabiam o que fazer.  A figura então falou, com voz macia e suave:
--- A paz do meu Senhor estejam com vocês. Eu sou Gabriel, o anjo da Misericórdia de Deus. Acalmem-se, pois nada do que está acontecendo aqui, é visto ou ouvido por ninguém de fora.
  De certa forma isto acalmou nossos personagens, porque estavam com medo de que com o barulho, os moradores da casa aparecessem. Ronaldo então perguntou ao anjo.
--- Então é verdade que este cálice que está na mão do professor, foi usado por Jesus cristo?
--- Sim. Respondeu Ele, enquanto o guerreiro continuava de joelhos, mantendo sua cabeça baixa.
  Afrânio, depois de beijar solenemente o cálice que segurava, perguntou.
--- Porque o soldado está aqui?
--- Ele roubou o cálice. Embora sabendo que não se tratava de uma peça em ouro, mesmo porque Jesus não usaria nada rico em sua missão, Demétrius tentou vendê-lo como peça sagrada. E como castigo o Senhor nosso Deus, fê-lo perambular pelo além até que alguém, viesse a rouba-lo novamente. Não estranhe o tempo passado, porque para Deus, mil anos são como um dia. E um dia, como mil anos.
--- E os ingleses? eles não o roubaram antes? Perguntou Afrânio.
--- Não... depois de José de Arimatéa , ele foi objeto de herança em todas as gerações  por passou, isto é, de pai para filho, de sogro para genro, etc.
--- Então agora vamos ficar tão desgraçado quanto o Demétrius ficou? Perguntou Ronaldo.
--- Não... Deus usou vocês , como instrumento de misericórdia para Demétrius, uma vez que em vocês não havia o germe da avareza. E por causa de vocês, esta casa jamais será destruída e um dia, um santuário de misericórdia será aqui estabelecido.
E virando para o Soldado, o anjo falou. ...Vá Demétrius, apresente-se novamente aos pés do Senhor nosso Deus e leve consigo o Santo Graal, como oferenda à Ele. Quanto a vocês, continuarei ajudando-os nesta viajem pelo tempo, podem partir agora.
  A figura de Demétrius se apagou juntamente com o cálice. A luz que inundava o ambiente ameaçou enfraquecer e Afrânio percebendo então que o anjo se preparava para desaparecer, gritou:
--- Espere...  espere... esclareça para mim aquele caso com a cigana... porque você a matou, se é que disse, que sempre esteve nos ajudando?
--- A cigana não morreu por ter sido usada... mas ela foi escolhida por mim, porque estava já com seu tempo na terra esgotado, tanto que não morreu naquela hora que vocês acham, mas sim muito mais tarde, quando todos  já dormiam serenamente.
  Esta foi a ultima fala angelical. A escuridão voltou a reinar no local e a porta, rangendo-se, abriu sozinha.
  Afrânio estava estarrecido e suava muito. Ronaldo ao perceber que a porta se abrira, esbarrou no professor e chamou à realidade.
--- Vamos professor... chega de surpresa por hoje...
--- Hã!?... é...  vamos.
  Saíram os dois, rumo ao lugar por onde entraram, isto é, utilizando a mesma rota dentro do mato, que fizeram para entrar. Desceram a escada comprida que ficava em frente a casa e chegando em baixo, no ultimo degrau, sentaram-se.
--- Espere... Disse Afrânio ...vamos nos assentar aqui e colocar a cabeça em ordem.
--- Se o senhor conseguir isso, tudo bem. Eu não conseguirei nem daqui a cem anos... mas professor, me diga o quê o anjo quis dizer com aquela frase “esta casa jamais será destruída...” perguntou Ronaldo, logo que se assentou.
--- Não sei... só o tempo responderá esta sua pergunta. Respondeu Afrânio, mas quanto ao resto, ficou tudo devidamente explicado... foi o dedo de Deus que nos conduziu até aqui... agora... deixa eu ver... nossa Mãe! Já são duas e meia... vamos embora, porque as três em ponto temos que passar o portal novamente.
  Tentando andar depressa, porque descalços as pedras misturadas na terra solta das ruas e dos caminhos por onde passavam, machucavam muito seus pés, chegaram os dois no portão da fazenda do major Novaes.
--- Veja... Os moradores fecharam o nosso portal... e com cimento.
--- Quanto tempo falta para as três horas? Perguntou Ronaldo.
--- Dez... não, nove minutos. Respondeu o professor, e completou. ... temos que pensar rápido em alguma coisa e programa-la para terminar em nove minutos.
--- Vamos pular o portão e uma vez lá dentro, acharemos uma solução. Falou Ronaldo.
--- Isto não... temos que programar primeiro a ação, e só entrar no ultimo minuto... porque se aparecer alguém vamos ter que fugir... E colocando a mão no muro, continuou. ... Estamos com sorte... apesar do pedreiro ter colocado tijolos em substituição à placa de cimento armado, ele só fez o trabalho na parte da tarde... e nem deu tempo de colocar o reboco.
--- Mas parece que ele não economizou cimento não..
--- Engano seu... ele fez o assentamento dos tijolos  com barro.... veja de perto. Disse o professor.
--- É parece que o anjo continua nos ajudando. Disse Ronaldo, olhando para o céu.
--- Vamos procurar um pedaço de pau de cerca, neste pasto aqui em frente.... vamos rápido porque está faltando sete minutos.
  Começaram então a procura desesperada por um pedaço de pau que pudesse servir de alavanca para estourarem a parede. Depois de quase dois minutos, finalmente encontraram uma acha de dormente, que poderia bem fazer o tal serviço. Quando se preparavam para leva-la, notaram a presença de um guarda da Estrada de Ferro, que vinha passeando por cima do leito da estrada, e já estava quase em frente a fazenda, mas distante dela uns cem metros.
--- Vamos depressa Ronaldo... temos que estourar aquela parede antes que ele chegue perto e ouça o barulho.
  E chegando novamente em frente ao muro, ainda do lado de fora da fazenda, colocando a madeira em um ponto estratégico, conseguiram fazer o primeiro furo, dois tijolos se soltaram.
--- Agora ficou mais fácil. Disse o professor.
  E mudando a posição da madeira, com um empurrão mais forte, desmoronou o resto da parede. Só que esta ultima operação, provocou um barulho que chamou a atenção do guarda. Este, avisado do estranho buraco aparecido na noite anterior, pelo major, dono da fazenda, largou o leito dos trilhos que vigiava e se dirigiu ao local do ruído que ouvira.
--- Chiii!... o guarda vem vindo para cá... disse Ronaldo que o vigiava, por um fenda do muro, enquanto o professor derrubava a parede.
--- Vamos então... aí não, Ronaldo... temos que pular o muro. Falou Afrânio, puxando o garoto pela camisa, que apavorado estava entrando no túnel pelo sentido contrário, isto é da rua para o interior da fazenda.
--- Quantos tempo falta?...
--- Menos de trinta segundos... vamos pular o muro. Disse o professor.
Rapidamente pularam e ficaram encostados nele, um de cada lado do buraco feito, aproveitando a escuridão da noite.
--- Não vai dar tempo... o guarda já está chegando. murmurou o garoto
--- Prepare-se... Vamos nos segurar até o ultimo instante.
  O guarda chegou no local, notando o buraco, se abaixou e olhou dentro. Mas a lua que era cheia, tinha se ocultado nas nuvens, e a escuridão então ficou mais densa, não permitindo que ele visse nada,  e por isso ele exclamou, ironicamente:
--- Estes pedreiros de hoje!... hã!?.
  Neste exato momento, completou-se o tempo. Afrânio que não tirava o olhos do relógio, gritou para Ronaldo:
--- AGORA.
  E os dois aventureiros pularam de mergulho através do túnel, para cima do guarda que estava ali agachado.
 
  Ao invés de aparecerem nus, a exemplo do que aconteceu na entrada, quando acordaram estavam vestidos da forma que estavam antes da estranha viajem, ou seja, como quando saíram do hotel. 
  Ronaldo acordou primeiro, e ficou esperando Afrânio acordar. Logo que o professor acordou, o garoto falou.
--- Agora entendi o que o senhor disse com “estabilização de alma”, pois o corpo do senhor vibrava muito.
--- È... eu sei do que você está falando... mas graças à Deus estamos de volta... só espero que a data esteja certa. Porque se estivermos na frente ou atrás no tempo, não haverá meio de acertar isso novamente...
--- Tudo bem professor... mas vamos embora, senão pode passar alguém aqui e ainda teremos que arranjar uma explicação fajuta.
  Na ida para o hotel, os dois foram conversando.
--- O senhor vai contar para Da. Jandira nossa aventura completa.
--- Eu prefiro não comentar nada com ninguém, pois passaremos como dois grandes mentirosos.
--- Bom, de minha parte... pode estar certo que a ninguém... mas a ninguém mesmo, nem mesmo para minha própria mãe, eu abrirei a boca. Mas e sua esposa?
--- Bem... não sei... mas como vou explicar a ausência de um dia?
--- É... a situação do senhor é diferente da minha.
  Chegaram ao hotel, e a porta de entrada estava apenas encostada. Empurrando-a, entraram. Como não havia ninguém na recepção, foram para seus quartos. Pelo corredor, Ronaldo falou.
--- Até aqui o anjo nos ajudou... mas o meu quarto deve estar fechado... enquanto que no do senhor ,basta apenas bater.
  E chegando então em frente as portas, Ronaldo notou que a dele estava entreaberta.
--- Veja professor mais uma ajuda do anjo... minha porta está aberta.
--- Ainda bem... mas a minha não.
--- Bata então nela... que eu vou esperar para ver se Da. Jandira acorda.
  A um simples toque com os nós dos dedos da mão direita, Jandira abriu. E logo foi falando.
--- Não é possível... vocês estão é com brincadeira.... nem dormem, como também não deixa ninguém dormir...
--- Porquê está dizendo isso. Perguntou Afrânio.
--- Ah!... não tem nem uma hora que vocês saíram... e virando as costas com mau humor, completou à medida que voltava para a cama. ... e falaram que iam passar uns três dias fora.
  Afrânio ao ouvir isso, olhou para Ronaldo que estava na porta do seu quarto, e piscando o olho para ele, sorriu e mostrou o dedo polegar para cima. Ronaldo entendendo o que aquilo queria dizer, sorriu também, e fazendo a mesma coisa com o seu, disse.
--- Boa noite professor... e sonhe com os anjos.

           
                                              FIM.

“Meus caminhos não os seus caminhos, portanto, Minha hora não é a sua hora





                   João de Assis






Bibliografia de apoio:
Os Grandes Líderes – Rei Artur – de Paul C. Doherty
História do Brasil – de Luís César Amad Costa e Leonel Itaussu  A. Mello
Suplemento 30 Anos de 64 – Jornal o Dia.
O Cruzeiro –  Edição Histórica da Revolução
Prospectos sobre as escavações em Cadbury fornecidas por Iain Bell ( via internet)
Reflexões – de Pedro Gussen

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